(Português) Carne de Cavalo e Especismo

ANIMAL RIGHTS - VEGETARIANISM, ORIGINAL LANGUAGES, 18 Mar 2013

Marcela Godoy, Consciência Animal – TRANSCEND Media Service

Não ter conhecido vida melhor não alivia o sofrimento do animal. Seus desejos fundamentais permanecem e é a frustração desses desejos que constitui grande parte de seu sofrimento. Há muitos exemplos: a vaca leiteira, que nunca tem permissão para amamentar seu bezerro, as galinhas poedeiras, que nunca podem andar ou mesmo esticar suas asas, a porca, que nunca pode fazer seu próprio ninho ou encontrar sua comida na natureza, etc. Por fim, nós frustramos o desejo mais fundamental de todos do animal – o de viver” – David Cowles

The Horsemeat scandal, ou o escândalo da carne de cavalo, começou no mês passado quando carne de cavalo foi descoberta em hambúrgueres congelados à venda no Reino Unido e na República da Irlanda. Desde então, vestígios foram descobertos em produtos de carne processados e refeições prontas em toda a União Européia.

Os olhos e ouvidos abolicionistas já detectam, de primeira, especismo explícito.

Para o leitor que está chegando agora, especismo é quando elegemos determinadas espécies animais como mais importantes e dignas de nosso respeito e de nosso cuidado. Esse é o especismo eletivo. Elegem-se, como mais importantes, determinadas espécies com base em critérios arbitrários. Para quem quer começar a saber mais sobre esse conceito, que aqui defini superficialmente, sugiro alguns textos da Sônia Felipe, aqui na ANDA. E também a leitura de seu livro, no final do texto.

Se você se escandaliza com um bife de cavalo no prato dos franceses e acha normal um “bife à cavalo” no seu prato, você é especista. Se você chora ao ver vídeos em que se come gato e cachorro e não chora quando come frango à passarinho, mortadela e salsicha, pois “não consegue fazer a ligação”, você é especista. Em seu texto “delicadamente canibal”, Affonso Romano de Sant’Anna diz que nunca se conformou com a idéia de que o bife no seu prato foi cortado do corpo de um ser vivo. E se denomina “hipócrita e vil. Arrependido e recalcitrante”. Também menciona que “os pósteros vão nos achar bárbaros. Não apenas por causa dos estúpidos assassinatos nas ruas de nossas cidades. Bárbaros porque durante milhares de anos achávamos que os animais, assim como as plantas, eram coisas sem desejos e sem alma”. Ademais, Tom Regan deixa claro que “quem possui ou não alma imortal não tem relação lógica com quem possui ou não, direitos”. Se você é “protetor do animais” e protege os gatos, os cães e os cavalos, mas gosta de um churrasquinho, você é especista. E sugiro mudar sua denominação para “protetor dos cães, gatos e cavalos”, não dos animais. Se você já avançou e é um ovo-lacto-vegetariano ou usa couro, lã, consome mel e laticínios, você continua sendo especista, pois ainda há animais sofrendo as consequencias de sua escolha (galinhas, vacas, vitelos, ovelhas, abelhas e etc), fora do círculo dos que você elegeu libertar. Saber disso não é de todo ruim. Perceber a incoerência do especismo nas nossas escolhas, geralmente – não sempre –  é o primeiro passo para avançar. Como já mencionei, o texto de hoje é mais uma reflexão acerca do especismo explícito deflagrado pela cegueira seletiva geral.

Voltando ao “Horsemeat scandal”: até hoje, autoridades de toda a Europa continuam a investigar como a carne de cavalo foi parar nas “imaculadas” refeições prontas rotuladas como carne bovina e suína. A Ikea, rede que possui 18 lojas no Reino Unido sai-se relativamente bem com o velho discurso de possuir “o compromisso de servir e vender alimentos de alta qualidade seguro, saudável e produzido com o cuidado com o meio ambiente e as pessoas que o produzem”. E acrescenta: “Nós não toleramos qualquer outro ingrediente além dos estipulados em nossas especificações, garantidos através de padrões estabelecidos, certificações e análise do produto por laboratórios credenciados”

O rebuliço é geral: semana passada, uma repórter da BBC adentrou um laboratório na Holanda para mostrar ao público como são feitos os testes de DNA para identificar se determinada amostra de comida possui ou não carne de cavalo; ministros da agricultura se reúnem em Bruxelas para negociações acerca do “escândalo da carne de cavalo”; varejistas e fornecedores fazem e divulgam testes e mais testes para garantir ao consumidor que o que eles consomem é carne de vaca/boi e de porco/porca. A Nestlé, em cujos alimentos britânicos e alemães também foram encontrados traços de carne de cavalo, rapidamente se pronunciou nos EUA (seu maior mercado e que também começa a questionar o conteúdo de suas refeições) dizendo que “não usa carne proveniente da Europa”.

Dos que se escandalizam por comer involuntariamente a carne de cavalo, uns se preocupam com a saúde. Outros, com os animais. Cavalos, somente. Porque bois, porcos, carneiros, peixes, avestruzes, coelhos, rãs, patos, frangos, vitelos, cordeiros, bizontes e etc. pode.

Dos que se preocupam com a saúde, a informação que mais tem circulado para rejeitar a carne equina, é que os cavalos consomem durante seu confinamento para o abate, um analgésico, o fenilbutazona que pode, pelo consumo humano involuntário da carne, ter entrado na cadeia alimentar (como se essa fosse “imaculadamente” saudável). A polêmica voltada para esse foco começou quando testes feitos em oito cavalos abatidos para consumo alimentar voluntário e consciente (?) na França, deram positivos para a droga. Há também uma mobilização em nível governamental, pois em alimentos destinados à merenda escolar pública também foram encontrados vestígios de carne equina.

Todos fazem ouvidos moucos às porcarias altamente nocivas encontradas na carne de outros animais. Todos pensam que, por conter a chancela de uma inspeção sanitária ou do “abate humanitário”, as demais carnes constituem-se em alimentos saudáveis e recomendados. Imunes à qualquer degradação nutricional. Continuam a fazer de seus estômagos e intestinos, cemitérios impregnados de hormônios nocivos e outros venenos, comprometendo sobremaneira sua saúde. Hormônios injetados, ingeridos e produzidos pelo stress do confinamento e do abate. Resultantes de tumores, úlceras, pus, lesões, cistos, contusões, edemas, mordeduras, neuroses e muita frustração social. Isso nos bois, porcos, carneiros, peixes, avestruzes, coelhos, rãs, patos, frangos, vitelos, cordeiros, bizontes e etc. que receberam o carimbo arbitrário de “permitido-o-consumo-bem-estarismo-tratamento-humanitário-manejo-responsável”.

Quão “saudável” é essa carne que tem seu consumo legitimado em larga escala?

Dos que dizem se preocupar com os animais (leia-se cavalos), as maiores manifestações contra seu abate vem dos Estados Unidos. O furdunço é armado em torno da mítica e nobre imagem do cavalo na história americana. Essa imagem é a que pesa mais fortemente na campanha anti carne de cavalo no país. Celebridades como o cantor Willie Nelson, por exemplo, estão em franca campanha para acabar com o abate de cavalos. Na década de 90, cerca de 100.000 por ano foram mortos, processados e enviados para a Europa. Em 2012, os três últimos matadouros de cavalos dos Estados Unidos foram fechados no Texas e Illinois sob pressão da sociedade e de entidades protetoras dos animais (leia-se, protetores dos cavalos).

Em se falando de todos os animais confinados e destinados para o abate, Tom Regan menciona que são “seres completamente destruídos que você só sabe que está vivo porque pisca, porque olha fixo para você (…) criaturas fora do alcance da ajuda por piedade ou de pior miséria por indiferença. Mortas para o mundo, exceto quando amontoados de carne”. Para os abolicionistas, pouco importa se os animais são realmente tratados humanitariamente. Confinados e feridos ou com florais de bach e música clássica. O fim é o mesmo. Seja cavalo, boi, porco, carneiro, peixe, avestruz, coelho, rã, pato, frango, vitelo, cordeiro, bizonte, não há diferença quando falamos de seus direitos.

Vide a fala de Eric Vigoureux, vice presidente da Associação de Açougueiros/Produtores de Carne de Cavalo. Ele defende alegremente em meio a essa atual polêmica, modernas práticas europeias de matadouros, apontando que os cavalos ficam inconscientes através do eletrochoque, e em seguida são levados à hemorragia controlada para não comprometer o sabor da carne. “O animal não sente medo, nem sofrimento”, diz. Ah, bom. Que alívio muitos podem sentir ao saber disso. Então são tratados humanitariamente. E todos dormem (e comem) felizes e tranquilos.

São vários exemplos dessa hipocrisia especista. Michael Johnson, jornalista do NYTimes, radicado em Bordeaux, relata que certa vez ouviu um casal americano reclamar em um restaurante de Paris que não poderia encontrar um hambúrguer decente na capital francesa. Quando um garçom veio para tomar o seu pedido, ele apontou para o “Steak haché (chevaline)” listado no menu. Ele não mencionou que “chevaline” significa carne de cavalo(!). Eles pediram isso. Dez minutos depois, eles estavam todos felizes comendo seus hambúrgueres de cavalo. Se eles soubessem a verdade, relata Johnson, eles provavelmente teriam saído correndo e gritando na rua. Comer bois, porcos, carneiros, peixes, avestruzes, coelho, rãs, patos, vitelos, cordeiros, bizontes, pode. Há um tempo atrás saiu em uma famosa revista de turismo a entrevista de um famosíssimo chef declarando com a maior naturalidade do mundo que uma das coisas mais “exóticas” que ele comeu foi o seguinte: pega-se o bezerrinho recem nascido que acabou de mamar, abre o estômago dele e come-se o leite já coalhado. Haja dom para abstrair-se. Já comentei isso uma vez em um dos meus textos aqui na ANDA.

Para os abolicionistas veganos não há polêmica nesse caso envolvendo o consumo de carne equina. Por inúmeras vezes somos denominados extremistas radicais. Tom Regan analisa da seguinte forma: “a verdade pura e simples é que, pontos de vistas extremos, são, às vezes, pontos de vista corretos (…) então a questão a ser examinada não é ‘eles são extremistas’? a questão é ‘eles estão certos’? Essa pergunta quase nunca é feita. E menos ainda, respondida adequadamente. Uma conspiração entre a mídia e alguns fortes interesses se encarrega disso”.

Discutir sobre comer ou não carne de cavalo tem o mesmo status de discutir sobre comer ou não carne de bois, porcos, carneiros, peixes, avestruzes, coelho, rãs, patos, frangos, vitelos, cordeiros, bizontes e os produtos de seus corpos. E é bom frisar que, quando me refiro aos animais, estão implícitos macho e fêmea.

As justificativas bem estaristas que mais pipocam na maioria das mídias e a falta de questionamento sobre comer os corpos e produtos de corpos de outros seres que não o cavalo, só vem reforçar e viabilizar a negligênica perpétua aos direitos de todos os animais.

Não há polêmica para os animalistas abolicionistas no horsemeat scandal. Apenas a clara percepção da predominância do especismo explícito, da incoerência e da hipocrisia.

Referências:

BBC LONDRES. Horsemeat tests. Disponível em http://www.bbc.co.uk/news/uk-21575604

FELIPE, Sonia. Por uma questão de princípios. Alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.

____________Esquimós e o especismo eletivo. Disponível em http://www.anda.jor.br/29/10/2010/esquimos-especismo-eletivo

____________Especismo eletivo. Disponível em http://www.anda.jor.br/10/06/2009/especismo-eletivo

_____________A moral tradicional e o especismo elitista. Disponível em http://www.anda.jor.br/06/06/2009/a-moral-tradicional-e-o-especismo-elitista

JOHNSON, Michael. Opinion : Hungry for horsemeat. Disponível em   http://www.nytimes.com/2008/06/19/opinion/19iht-edjohnson.1.13829773.html
REGAN, Tom. Jaulas Vazias. Rio Grande do Sul: Lugano, 2006

SANT´ANNA, Affonso Romano de. Tempo de delicadeza. Porto Alegre: L&PM, 2007.

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Marcela Teixeira Godoy. Bióloga, Professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Coordena e trabalha com projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão voltados para o abolicionismo animal. Doutoranda em Ensino de Ciências na Universidade Estadual de Londrina-Paraná, Brasil.

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