(Português) Iliguagem e Glotopolítica: Descomunhão
ORIGINAL LANGUAGES, 5 Oct 2015
Hildo do Couto – TRANSCEND Media Service
27 set 2015 – O conceito de comunhão é um dos mais importantes na versão da Ecolinguísica praticada no Brasil, a Linguística Ecossistêmica. Ele foi originalmente proposto pelo antropólogo inglês Bronislaw Malinowski em 1923 (cf. Malinowski 1972) e, depois, retomado por Roman Jakobson no contexto de suas seis funções da linguagem (Jakobson 1969). Na década de setenta do século passado, o linguista francês Henri Gobard o retomou e usou em um sentido muito próximo ao que ele tem na Linguística Ecossistêmica (Gobard 1976). Em Couto (2003) eu o reelaborei, analisando a interação que houve entre os membros da esquadra de Cabral em Porto Seguro, em 1500.
No contexto da Linguística Ecossistêmica, comunhão é um pré-requisito para que os atos de interação comunicativa sejam eficazes. Todo e qualquer um desses atos tem que ser precedido de um relativo estado de comunhão. Nesse sentido, o termo designa uma predisposição para a interação, como já sugere sua origem religiosa. Vale dizer, não basta falar a mesma língua para que a comunicação se estabeleça, para que seja eficaz. Um bom exemplo são os casais. Quantas vezes um não diz ao outro: “Você não me entende!”, “Você não me ouve!”. É claro que o significado lógico das palavras e da frase como um todo foi entendido. No entanto, a intenção com que foram compreendidos não é a mesma pretendida por quem falou. O que acontece é que um não concorda com o que o outro quis dizer. Por isso de alguma maneira está fechado para o que ouve. Se houvesse comunhão, estaria aberto para seja lá o que for que o outro eventualmente viesse a dizer. Haveria satisfação em estar juntos. Nesse sentido, o que quer que um dissesse seria logo bem-vindo, “entendido”. Enfim, a comunhão é um pré-requisito para a comunicação.
Como se vê, comunhão implica uma certa satisfação em estar juntos, há uma solidariedade mútua entre os presentes. Afinal, somos uma espécie gregária, como muitas outras espécies de seres vivos existentes na face da terra. No entanto, o que se nota nos dias de hoje é uma ausência de comunhão muito comum entre pessoas que se veem juntas. Eu tenho presenciado membros de uma família inteira (pai, mãe, filhos, filhas) fisicamente juntos em torno de uma mesa de restaurante, mas todos ligados no WhatsApp, trocando mensagens com alguém que não está ali. Pode até acontecer o incrível: um dos membros dessa família se dirigir ao outro que está ali ao seu lado pelo celular, sem tirar os olhos dele. Vale dizer, o que estamos começando a testemunhar é o contrário da comunhão. As pessoas estão fisicamente juntas (nível natural), mas mentalmente separadas, pois cada uma está ligada a alguém distante. Trata-se, portanto, de uma incomunhão, ou melhor, de uma descomunhão, termo que caracteriza melhor o fato de se tratar do contrário da comunhão mediante o prefixo des-. É uma grande novidade social, que provavelmente reflita algo mais geral que está acontecendo com nossa civilização, assunto para o qual não tenho competência.
O termo “descomunhão”, ao lado de “incomunhão”, foi mencionado pela primeira vez em Matos, Couto, Marques & Couto (2014: 222), embora não no mesmo sentido que tem no presente ensaio. Em seguida, ele foi retomado no decurso das aulas da disciplina Ecologia Linguística que ministrei no contexto do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília no primeiro semestre de 2015. Foi uma das experiências mais prazerosas que já tive em minha carreira docente. Houve discussões acaloradas em praticamente todas as aulas. A ideia de “descomunhão” foi uma delas, inclusive usando esse termo. Tanto que um dos alunos, Jonas Pereira dos Santos, aceitou minha sugestão e redigiu sua monografia para aproveitamento do curso justamente sobre o assunto (Santos 2015).
Antigamente, as pessoas viviam efetivamente em comunhão em diversas situações. Uma delas era em torno da mesa de refeição. Em algumas situações, ao lado da lareira para se aquecer. Em outros casos, mais antigos, para os jovens ouvir histórias contadas pelos mais velhos, fato que é parte da cultura africana, como se pode ver em Couto (2009). Com o advento dos meios de comunicação de massa, essa vida comunial começou a se deteriorar. Tudo começou com o rádio. Na hora de determinados programas, ninguém podia dar um pio, pois todos queriam ouvir o que estava se passando no rádio. Todos os membros da família estavam fisicamente juntos no mesmo espaço, mas a atenção de todos estava fixada no aparelho de rádio. Felizmente, isso só acontecia em algumas poucas horas do dia, especialmente à noite. Essa tendência aumentou enormemente com a chegada da televisão. Na hora dos programas de grande audiência, como as telenovelas, todo mundo na família ficava ligado exclusivamente na telinha. A partir de determinada época, a divisão entre os membros da família aumentou ainda mais, pois o pai passou a ter um aparelho para ouvir noticiários e programas esportivos, a mãe ter outro para ver as novelas e as crianças outro para ver os programas infantis. Novo passo no sentido do esvaecimento da comunhão e na direção da descomunhão.
Na década de noventa do século passado eu li em algum lugar o criador da SONY, Akio Morita, anunciar como grande inovação a invenção do “walkman” (não me lembro bem a data precisa em que o aparelho surgiu). Segundo Morita, a partir de então as pessoas teriam autonomia, liberdade para ouvir o que preferissem. No entanto, a inovação foi mais um passo para na direção do isolamento das pessoas. Pouco depois, veio o aparelho de telefone celular, que isolou os indivíduos ainda mais. A partir desse momento, não precisavam mais usar um único aparelho de telefone fixo, com todo mundo em volta ouvindo o que diziam. Em qualquer lugar das cidades e, atualmente, até na zona rural, vemos pessoas grudadas no celular, de mamando a caducando. Para coroar de vez esse processo, surgiu o WhatsApp na segunda década do século XXI. Agora, sim. Grande parte das pessoas não tira os olhos do aparelho celular. Quando alguém as interpela, sempre estão atendendo algo “importante”, como se antes do celular e do WhatsApp não houvesse vida. O que há é que após esses dois artefatos as pessoas estão deixando de conviver efetivamente com quem está seu lado, interagindo sempre com quem está ausente.
Em vez da comunhão, estão todas em descomunhão, ou seja, fisicamente juntas, mas mental e espiritualmente separadas pelo aparelho de celular e o WhatsApp. Em vez da aldeia global prevista por Marshall McLuhan na década de sessenta do século passado, o que temos é um bando de individualidades, de pessoas que se consideram livres, mas que estão escravas de uma engenhoca criada pela tecnologia. Esta desfaz o que a natureza faz. O espaço físico mantém as pessoas juntas, com o que deveriam interagir entre si como antigamente. No entanto, a tecnologia as separa.
Se os praticantes de Linguística Ecossistêmica apregoam que sem comunhão não há comunicação, hoje em dia se pode dizer que com a presença do WhatsApp tampouco há atos de interação comunicativa entre pessoas que estão juntas em determinado lugar. Essa movimento se insere no contexto mais geral de nosso distanciamento da natureza. Como também já previra Marshall McLuhan, nosso contato com o mundo exterior aos nossos corpos está cada vez mais mediado por “extensões” deles. Os óculos são extensões dos olhos, embora aqui se trate de uma necessidade (criada por nossos maus hábitos). A pele é protegida do sol e do frio por roupas, casacos etc. O ar é substituído por ar condicionado, inalação de oxigênio etc. A água não pode mais ser colhida diretamente nos rios, córregos e lagos, porque jogamos todo o nosso esgoto neles. Enfim, pode-se dizer que até o momento estamos sendo abduzidos mentalmente, mas daqui a uns anos, décadas ou séculos, estaremos sendo abduzidos fisicamente. Nesse instante, a descomunhão será total.
O que é estranho nesse tipo de conversa é que se trata de algo muito superficial, tudo se passa muito rapidamente. Um indivíduo frequentemente “conversa” com várias pessoas ao mesmo tempo. Para dar conta disso, faz uso de grande quantidade de abreviaturas, siglas e outros recursos que permitam a “mensagem” ser formulada o mais rapidamente possível. A interação é tão superficial que assim que se termina uma “conversa” a pessoa sequer se lembra de que e com quem falou. Mesmo assim, sempre que se pergunta a essas pessoas por que não largam o celular, sempre têm uma resposta na ponta da língua: “Eu tinha uma coisa importante para falar com fulano”.
Outro lado estranho desse tipo de interação (afinal, é uma interação) é que ela muitas vezes se transforma em um vício. Vemos depoimentos de diversas pessoas na televisão dizendo que quando ficam sem acesso ao celular entram em pânico. A tal ponto que a coisa já está sendo encarada como uma doença. Alessandro Borges Tatagiba informa que no Japão existem os hikikomori, termo que literalmente significa “isolado em casa”. Segundo esse autor, “os hikikomoris são pessoas geralmente jovens entre 15 e 39 anos que se retiram completamente da sociedade, evitanto contato com outras pessoas. Uma psicopatologia grave neste grupo se refere à dependência patológica da internet” (Tatagiba 2014: 201, rodapé n. 48).
Por enquanto os usuários do WhatsApp no Brasil ainda saem de casa, sozinhos ou acompanhados. Mas, é como se não saíssem, pois estão sempre no mesmo lugar, que podemos chamar pelo termo arcaico alhures. O corpo dessas pessoas pode até estar presente (nada a ver com “missa de corpo presente”), mas suas mentes está alhures. Seria interessante reativar esse termo e, inclusive, criar um derivado dele, a alhuridade. Afinal, é uma categoria claramente visível nesses tempos de crescente descomunhão.
REFERÊNCIAS:
Couto, Hildo Honório do. 2001. A interação entre portugueses e ameríndios em Porto Seguro em 1500. Pesquisa linguística (UnB) v. 6, n. 2, p. 7-28.
_______. 2003. Portugueses e tupinambás em Porto Seguro, 1500: interação, comunhão e comunicação. In: Roncarati, Cláudia & Abraçado, Jussara (orgs.). Português brasileiro: Contato linguístico, hterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7Letras, p. 253-271.
_______. 2009. As narrativas orais crioulo-guineenses. Papia 19, p. 51-68.
Gobard, Henri.1976. L’Aliénation linguistique: Analyse tétraglossique. Paris: Flammarion.
Jakobson, Roman. 1969. Linguística e poética. In: Linguagem e comunicação. São Paulo: Cultrix, p. 118-162 (original, 1960).
Malinowski, Bronislaw. 1972. O problema do significado em línguas primitivas. In: Ogden, C. K. & Richards, I. A. O significado de significado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, p. 295-230 (original, 1923).
Matos, Francisco; Elza do Couto; Adilson Marques & Hildo do Couto. 2014. Ecolinguagem. In: Couto, Elza N. N. do, Dunck-Cintra, Ema M. & Borges, Lorena A. O. (orgs.). Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora. Brasília: Thesaurus, p. 215-224.
Santos, Jonas Pereira dos. 2015. Descomunhão: Um incômodo hiato no seio da ecologia da comunidade. UnB, monografia para disciplina Ecologia Linguística, 1/1015.
Tatagiba, Alessandro Borges. 2014. Ecossistema virtual: Mediação, representação e imaginágio em jogo. In: Couto, Elza; Ema Duck-Cintra & Lorena Borges (orgs.). Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora. Brasília: Thesaurus, p. 193-294.
APÊNDICE
Assim que postei este texto, o professor Francisco Gomes de Matos me enviou o seguinte, que ele chama de “reflexão rimada”:
Alerta Ecolinguístico – Por Francisco Gomes de Matos*
Atenção à digital descomunhão
Cuidado com a desagregadora WhatsApptidão:
Desestimula a dialog(AÇÃO)
Desarticula a cooperação
Desarmoniza a conversação
Desumaniza a interação
Dignifiquemos nossa comunicação
Ao diálogo e ao multílogo asseguremos ECOsustentação !
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Hildo do Couto – Sou professor de linguística na Universidade de Brasília, DF, apreciador da natureza, da cultura oriental e sua filosofia, bem como praticante de tai chi chuan.
* Linguista da Paz, professor emérito de linguística, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Ele foi o primeiro a relacionar língua e ecologia no Brasil.
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