(Português) Religião na Cidade
ORIGINAL LANGUAGES, 9 May 2016
3 maio 2016 – Nunca me irei esquecer da frase que no primeiro filme da trilogia Matrix marca a recuperação, o regresso à acção de Morfeus. Nessa situação em que o herói está quase a sucumbir, um dos Mr. Smith, um dos muitos iguais, mas ironicamente muito sapiente, interroga-o. Incapaz de dele tirar alguma informação, ataca com uma afirmação demolidora, comparando o ser humano, a espécie biológica, que Morfeus defende de forma irredutível, a um vírus.
“Vocês vão para uma área e multiplicam-se e multiplicam-se, até que todos os recursos naturais sejam consumidos. A única forma de sobreviverem é indo para uma outra área. Há um outro organismo neste planeta que segue o mesmo padrão. Você sabe qual é? Um vírus. Os seres humanos são uma doença, um cancro neste planeta. Vocês são uma praga.”
É, de facto, curiosa a forma de vida desta espécie que se auto proclamou, não apenas de Sapiens, mas de Sapiens sapiens. Ora, depois da revolução agrícola ter votado muitas das terras férteis para a desertificação por exploração até ao limite, depois da revolução industrial ter levado a uma corrida louca às matérias-primas, tendo desenvolvido formas de colonialismo de que hoje ainda somos herdeiros nos traumas e nos conflitos que temos, por exemplo, no Médio Oriente, estes “duplamente sábios” estão à beira de rebentar com um planeta através de um sem número de ataques sistemáticos que deixaram uma pegada ecológica impossível de limpar em muitos casos.
Estes “duplamente sábios” perderam, até, os limites de uma fraternidade biológica, de espécie. Deixam fora da civilização uma enorme fatia dos seus, vivendo grande parte da população mundial em níveis de subsistência ridícula, comparado com a riqueza que circula entre as instituições financeiras – irónica e provocantemente, quantas vezes não é muito melhor e mais digno ser-se um qualquer Canis vulgaris ou um Felis catus numa cidade europeia ou norte americana, com alimentação cuidada, veterinário e carinho, que Homo sapiens sapiens na boa parte das cidades dos países menos desenvolvidos?
Mas numa coisa somos invulgarmente coerentes. Conseguimos ser maus cuidadores de tudo o que temos à nossa volta, seja o planeta, sejam os ecossistemas, seja o nosso semelhante, os da nossa espécie, ou os restantes animais. E não sei desde quando temos essa marca no nosso comportamento, na nossa hierarquia de valores que faz com que seja tão difícil encetar uma qualquer mudança de paradigma de pensamento em relação ao planeta, aos outros humanos, ou aos animais não humanos.
De facto, assim somos nós. Seres vivos que moldamos os habitats e, acima de tudo, os gerimos a nosso belo prazer. Muitos são os Textos Sagrados que dão lugar a um domínio da natureza, do planeta. O Homem, como espécie, está acima dos restantes animais, fora dos ecossistemas, dominando-os. “Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra” foi o mote para toda uma postura que nesse trecho do Génesis (1, 28) colocou o planeta sob a nossa alçada.
Contudo, esse chamado “mandato cultural” escrito no texto bíblico é também responsabilidade. Sim, a entrega do resultado da criação divina ao ser humano implicava um respeito devido á sua própria natureza. A criação era divina e deveria ser mantida, continuada, mesmo.
Mas muito a nossa cultura, a nossa espécie, mesmo, parece ter perdido dessa necessidade de relação em respeito com o criado, acredite-se tê-lo sido por um deus, ou não. O caso dos maus tratos a animais é uma marca da nossa profunda ligação a práticas de profundo atropelo ao mais simples relacionamento com o que nos transcende. E é-o, não por uma questão de religião ou de fé. É um atropelo ao que nos transcende porque implica uma total ignorância por muita coisa, seja o facto já mais que conhecido de muitos dos animais sentirem de forma muito próxima à nossa, seja, tão simplesmente, por noção da nossa pequenez e lógica posição de humildade perante uma natureza tão gigante, poderosa e fascinante.
Um amigo com quem tenho desenvolvido alguns projectos educacionais, dizia-me hoje sobre a forma que usa para rapidamente avaliar a sociedade de uma cidade. Dizia-me o Walter Borges “quando chego a uma cidade vou ao Zoo. A forma como trata o Zoo diz-me como é a cidade”. Sábia esta postura. Fez-me pensar na dignidade com que tratamos os animais e levou-me a fazer este texto
Sem dúvida, hoje a relação com os animais, sejam humanos ou não, deveria fezer-se através da dignidade. Mas é muito estranho que muitos de nós necessitem da dor para criar prazer. Seja a dor do comprazimento com desportos de luta, seja a dor infringida a quem é inferior hierárquico, ou visto, retratado e tido como inferior em termos de género, de religião ou, simplesmente, por ter gostos e hábitos diferentes, ou seja a dor por abandonar, bater, matar um animal. Ou pior, por ter hábitos de prazer, sociais, a que chama cultura, como o caso das touradas.
Sim, é muito estranho que continuemos a chamar cultura a formas verdadeiramente bárbaras de lidar com os animais. E bárbaras porque anacrónicas. Sou o primeiro a perceber o quão está nos nossos traços mentais toda uma linha de acção social em torno da luta, das ferramentas mentais da virilidade castreja que desaguaram, por exemplo, na tourada por alteração do modelo guerreiro feudal, medieval. Com o fim de um percurso histórico de vários milhares de anos em que a classe guerreira se ginasticava e exercia o poder simbólico na luta entre pares ou na caça, chegamos ao chamado Mundo Moderno (sécs. XV a XVIII) e o modelo altera-se: a caça de grandes mamíferos desaparece da Europa, e os torneios deixam de fazer sentido na nova sociedade de corte. A tourada é uma recriação desse espírito num novo ambiente.
Sei, ainda, o quão antigos são os símbolos em torno da forma como se organizou uma sociedade sempre preparada para uma sobrevivência colectiva que passava pela luta, pela guerra, pela afirmação e culto de tudo o que fosse confluir nesse desiderato. O cavalo e o touro são elementos simbólicos desde as mais recuadas gerações do Neolítico por isso mesmo.
Contudo, a nossa civilização já nos levou a outros patamares de consciência. Fomos à Lua, fazemos máquinas excepcionais, criámos formas de globalizar o conhecimento, demos ao mundo obras-primas de sofisticação e de estética, mas continuamos a bater palmas quando um touro, em agonia, a esvair-se em sangue, com farpas presas ao corpo, avança contra um cavalo e cavaleiro que lhe fogem e que, num momento derradeiro, mais uma farpa lhe cravam no corpo para êxtase de muitos.
Perdemos o sentido das coisas tornando-as anacrónicas. No que respeita à tourada, fazia sentido uma luta entre um nobre, ou mesmo um grupo de gente do povo, e um touro quando nas festividades agrárias se procurava potenciar a natureza benfazeja para dar alimento, colheitas ricas, para dar às comunidades a força dessa natureza contida na pujança do animal selvagem. Fazia ainda sentido essa luta contra um touro quando toda uma comunidade vivia aterrada com a possibilidade de um qualquer recontro bélico, e onde a valentia, a virilidade dos seus nobres e guerreiros eram a única garantia de paz.
Por mais estranho que possa parecer, nestes dois quadros, a tourada era ecológica. Não de uma ecologia simplesmente referente aos seres vivos em equilíbrio no meio envolvente, mas de uma ecologia em que as questões do espírito eram desenvolvidas através destes ritos de relação com a natureza.
Mas hoje, século XXI, nada disto faz já sentido. Pior, o que fazia sentido há alguns séculos, hoje transformou-se em espectáculo para gáudio de uns. Anacrónico, perdido o sentido ancestral, em vez de se terem reformulado os ritos, de se terem abandonado as práticas obsoletas, criaram-se mecanismo de perpetuação, agora já sem funcionalidade alguma para além de um estilo de vida de certos grupos que se refugiaram em memórias de valentias, de nobrezas e linhagens.
Transformada naquilo que a palavra tradição tão facilmente permite, a tourada fixou-se e agarrou-se a um quadro de pseudo-identidade, como se lhe fosse possível permanecer inalterável quando todo o mundo se modificou.
Isto é, hoje a tourada já não torna sacro um touro. O animal já não é oferecido em sacrifício (sacrifício = tornar sagrado) para uma função nobre e necessária para a comunidade se sentir entrosada com a natureza, parte dela, e dela recebedora de bençãos. Não, hoje temos espectáculo, com palmas e bilhetes, com negócio. O touro sofre simplesmente para que uns dos tais Sapiens sapiens possam ter um momento de adrenalina e de prazer ao ver a dor de outro animal.
Eventualmente, somos os piores cuidadores que o Criador, qualquer que ele seja, colocou para cuidar do Jardim. Talvez, mesmo, o Mr. Smith tenha razão. Somos um vírus, um cancro para o planeta.
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Prof. Paulo Mendes Pinto é diretor da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona em Lisboa, Portugal.
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