(Português) Telemóveis no frigorífico, fita-cola na webcam. “Não devemos ser paranóicos, mas para quê facilitar-lhes o trabalho?”
ORIGINAL LANGUAGES, 26 Sep 2016
Catarina Santos | Renascença - Sapo
21 Set 2016 – Por causa de Snowden mudou muitos hábitos, transformou a sua “história incrível” em romance e vê-a agora chegar ao cinema. Luke Harding, o jornalista que viveu com o Brexit “o acontecimento político mais deprimente” da sua vida e que acredita que o jornalismo atravessa “anos de ouro”, em entrevista à Renascença.
Luke Harding passou temporadas num “bunker” do jornal britânico The Guardian a investigar os documentos libertados por Edward Snowden em 2013 e que expuseram um gigantesco esquema secreto de vigilância mundial. Uma história que ultrapassava a de “um Jason Bourne ou de um James Bond” e que o jornalista transformou no romance não ficcionado “Os ficheiros Snowden – A história secreta do homem mais procurado do mundo”. O livro inspirou “Snowden”, o filme de Oliver Stone, que chega esta quinta-feira [22 set 2016] aos cinemas.
O jornalista, que passou por Portugal esta semana para um debate sobre privacidade digital, foi proibido de entrar na Rússia em 2011, por causa do teor das suas reportagens. Garante que Snowden “não é o melhor amigo de Putin” e acredita que “preferia estar noutro sítio qualquer”. Descreve o ex-analista de sistemas da Agência de Segurança Nacional norte-americana como “um tipo incrivelmente corajoso”, que fez soar o alarme da séria ameaça à privacidade da era digital. “Se não fizermos nada, os nossos filhos e netos não terão privacidade de todo”.
A história de Edward Snowden, incluindo as consequências que teve para os jornalistas que trabalharam o assunto directamente, foi, para usar as suas próprias palavras, “além do enredo de qualquer ‘thriller'”. O seu livro é isso, um “thriller”?
Totalmente. É a história mais incrível. Imagine que está a falar com um agente literário e lhe diz:”estou a trabalhar na história de alguém que trabalha para uma agência norte-americana de informação e que rouba os seus segredos, foge para Hong Kong, entrega-os a jornalistas, tem todas as agências de espionagem do mundo a persegui-lo”… É mais do que um Jason Bourne ou um James Bond. E foi mesmo o que aconteceu. Escrevi o livro como um “thriller” não ficcionado. Não o queria escrever apenas para alguns “geeks” e para pessoas interessadas nas questões da internet e da privacidade, mas para toda a gente. É o tipo de livro que se pode ler na praia, no comboio ou no metro.
O que mais o surpreendeu em toda esta história?
O ponto até ao qual estamos a ser espiados e do qual agora temos consciência, graças ao Edward Snowden. O que sabemos é que a América e os seus aliados, incluindo o meu país, o Reino Unido, estão rotineiramente a recolher os teus e-mails, os teus SMS, o identificador de localização do telefone de cada vez que te moves para registar onde estiveste, com quem falaste, etc. Isto é novo, é avassalador e foi feito em segredo. Não sabíamos nada sobre isto até 2013, quando o Snowden deu o meu material ao meu jornal, o Guardian.
Saber disto fê-lo mudar, pessoalmente, a forma como se comporta?
Na verdade, sim. Eu trabalhei em Moscovo antes como correspondente do Guardian e sabia que as agências russas de espionagem – o KGB, o FSB – era muito boas a fazer vigilância, por isso já tinha muito cuidado. Mas agora, se me vou encontrar com uma fonte, por exemplo, se vou ter uma conversa privada, deixo o meu telefone longe e vou para outro sítio. O conselho do Snowden foi que puséssemos o telefone no frigorífico, porque assim não pode ser interceptado.
Escreveu o livro sempre sem ligação à internet?
Sim, trabalhei sempre “offline”, tive o cuidado de encriptar o texto sempre que pude. O meu gabinete fica no edifício do Guardian, em Londres, e eu e uma pequena equipa de jornalistas trabalhámos num “bunker”. Tínhamos quatro computadores que também estavam permanentemente desligados da internet. Tínhamos seguranças à porta, 24 horas por dia. Tivemos muito, muito cuidado para garantir que tratávamos este material correctamente.
Descreve no livro alguns episódios de possível paranóia entre os jornalistas que trabalhavam o material. Esperava a forma como as autoridades britânicas reagiram e o que forçaram o Guardian a fazer?
Não lhe chamaria paranóia. É um facto que as agências britânicas de espionagem estavam apavoradas com as histórias que publicaríamos. Não sabiam que material o Edward Snowden nos tinha passado no Verão de 2013. Estavam desesperados por descobrir e escutavam as nossas comunicações… Sofremos muita pressão política do governo britânico, tivemos ameaças legais e em Julho de 2013 dois espiões da agência do governo vieram às nossas instalações e obrigaram-nos a destruir os nossos computadores com brocas. E isto é totalmente ridículo, porque dissemos ao governo britânico que este material existia no Rio de Janeiro, em Nova Iorque, em Berlim… Portanto, destruir fisicamente os nossos computadores não impediria as notícias… Mas creio que David Cameron, o primeiro-ministro na altura, achou que se esmagassem um computador o problema se resolveria.
O mundo soube desta história em Junho de 2013. Diria que, para o cidadão comum, o choque inicial se transformou muito rapidamente em indiferença?
Depende do país. No meu país houve alguma indiferença logo desde o início, porque os britânicos vêem o James Bond, confiam nas suas agências de espionagem… Temos um sistema político muito estável. Mas noutros países com um passado de ditadura, como na Alemanha, no Brasil… ou mesmo em Portugal, que teve a sua própria história de ditadura e polícia secreta, as pessoas perceberam que, para termos uma sociedade livre e democrática que funcione, temos de ter privacidade. O que o Snowden nos diz é que a privacidade está rapidamente a desaparecer na era digital. E se não fizermos nada para o travar, se não nos queixarmos, se não fizermos barulho, os nossos filhos e netos não terão privacidade de todo.
Há uma personagem da NSA que diz no filme que as pessoas não querem liberdade, querem segurança…
Os espiões não estão sempre certos e os cidadãos não estão sempre errados. Tem de haver uma conversa séria sobre as fronteiras entre a privacidade, por um lado, e a segurança, por outro. Mas o que sabemos através do Snowden é que estes programas recolhiam os dados de toda a gente e não eram uma forma eficaz de travar o terrorismo. Havia dúvidas sobre se era legal, mas há dúvidas ainda maiores sobre se era eficaz. Os americanos trocam 500 milhões de SMS por dia. Juntamente com o Reino Unido, são 38 mil milhões de dados por dia. Como podes identificar terroristas no meio de tamanho volume de informação? O que sabemos é que a maioria dos ataques na Europa foram feitos por pessoas que já estavam nos radares, que as autoridades já conheciam. Por isso, tem de haver formas mais inteligentes de fazer isto do que vigiar o e-mail da tua avó que vive no norte de Portugal ou do meu pai que vive na costa sul de Inglaterra.
Somando tudo o que aconteceu, com o que sabe hoje, diria que valeu a pena o que Edward Snowden fez?
Acho que o Snowden é um tipo incrivelmente corajoso. Acho que sabia perfeitamente o que estava a fazer, sabia que a sua vida nunca mais seria a mesma, esperava ir para a prisão, não contava acabar em Moscovo, onde foi parar por acaso, quando queria chegar à América Latina.
Edward Snowden é a pessoa que veio destapar a cortina e revelar a verdadeira natureza das coisas no nosso século XXI, em que toda a gente está no iPhone, toda a gente está quatro, cinco, seis horas por dia ao computador, os nossos filhos estão também colados aos seus telefones. Ele fez soar um alarme sobre o que se está a passar. A história deve-lhe isso. Acho que devia ser perdoado nos Estados Unidos e acho que é um homem muito corajoso.
Fala com ele regularmente?
Eu fui expulso da Rússia há cinco anos. Não posso viajar para Moscovo e ele não pode sair de lá. Mas o meu colega Ewen MacAskill, que trabalha ao meu lado, falou com o Snowden na semana passada. Ele parece estar bem, parece estar tranquilo. Está muito interessado neste novo filme, do Oliver Stone. Mas a realidade é que está preso na Rússia, creio que por alguns anos.
O Luke trabalhou na Rússia, conhece o país. Como é que o cidadão comum russo vê o Snowden?
Para os russos creio que ele é uma espécie de herói. Mas o paradoxo é que a Rússia também faz vigilância em massa… E com menos controlo legal do que nos Estados Unidos. O que é interessante, agora que o Snowden está em Moscovo há três anos, é que ele tem sido cada vez mais crítico do governo russo e da forma como tem esmagado as organizações de direitos humanos, os activistas da oposição…
Acho que o Snowden compreende que está numa situação complicada, mas ele não é um espião russo, ele não trabalha para o Kremlin, não é o melhor amigo de Vladimir Putin. Não posso falar por ele mas, honestamente, creio que preferia estar noutro sítio qualquer.
Então diria que ele é um convidado ou um prisioneiro?
Ele é um convidado… não é um prisioneiro… Mas seria ingénuo pensar que ele próprio não é vigiado pelas autoridades, pelo FSB, porque é isso que eles fazem.
É a segunda vez que um livro seu é adaptado ao cinema (depois da sua história sobre o Wikileaks ter dado origem a “O Quinto Poder”, com Benedict Cumberbatch a interpretar Julian Assange). Colaborou com o Oliver Stone no processo?
Já escrevi cinco livros… Quando recebes uma chamada de Hollywood é sempre muito agradável. Normalmente o que acontece é que recebo a chamada, o realizador – neste caso, o Oliver Stone, – marca todas as páginas do meu livro e depois vai embora e faz o seu filme. Escreve o seu próprio guião. É dele, não é meu. Mas vi o filme e é um bom filme. É um “thriller” político e o Joseph Gordon-Levitt é fantástico como Edward Snowden. E é muito bom ver o meu livro interpretado por outra pessoa num grande ecrã.
Foi correspondente de guerra, trabalhou em Berlim, em Moscovo… Está em condições de poder fazer um enquadramento mais geral da realidade. Como olha para a Europa por estes dias?
A Europa está uma confusão. O meu país acaba de votar a favor do Brexit. Eu não votei pelo Brexit e foi o acontecimento político mais deprimente da minha vida. O Reino Unido dividiu-se mesmo a meio. Entre famílias, entre aldeias, entre comunidades. Há problemas económicos, há uma crise de refugiados, há um desvio para os extremos – para a extrema-esquerda e para a extrema-direita – e as pessoas querem soluções simples para problemas complexos.
Tendo passado quatro anos na Rússia, e tendo sido expulso pelo Kremlin por causa das minhas reportagens, acho que a vale a pena lutar pela Europa. Nós que vivemos em países europeus democráticos tomamos muita coisa como garantida – o estado de direito, instituições que funcionam, educação para as nossas crianças… E acho que nos devemos agarrar a isso a todo o custo. E não nos desviarmos para uma fantasia nacionalista louca de direita ou para uma fantasia louca anti-imperialista de esquerda.
E devemos amar-nos uns aos outros.
E como fica o jornalismo no meio disso tudo?
Como o Mark Twain disse um dia, os rumores da sua morte foram manifestamente exagerados. O jornalismo não está morto. O modelo económico em que se sustentou durante muito tempo está, de certa forma, falido. Já ninguém quer pagar pelas notícias. Os jornais, incluindo o meu, estão a perder quantidades avultadas de dinheiro. Apesar disso, penso que é uma idade de ouro para o jornalismo. Eu estive envolvido em fugas incríveis de informação. O Wikileaks, os telegramas diplomáticos dos Estados Unidos em 2010, os ficheiros do Snowden em 2013, mais recentemente os “Panama Papers” – que me fizeram passar seis meses a investigar os segredos de gente rica, inclusivamente neste país… As fugas de informação ficaram cada vez maiores. A última tinha 11,5 milhões de documentos. Por isso… não temos dinheiro, estamos deprimidos, os tempos são difíceis, mas ao mesmo tempo sabemos mais do que alguma vez soubemos. E vejo o balanço de poderes a mudar em favor dos jornalistas e a afastar-se dos ricos e poderosos, cujos segredos são agora muito mais facilmente expostos.
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