(Português) O golpe de 2016 interrompeu construção de um Brasil autônomo
ORIGINAL LANGUAGES, 10 Sep 2018
Leonardo Boff – TRANSCEND Media Service
9 set 2018 – Observador atento dos processos de transformação da economia mundial em contraponto com a brasileira, Celso Furtado, um dos nossos melhores nomes em economia política, escreveu em seu livro “Brasil: a construção interrompida”(1993):
“Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade linguística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada…Não ignoramos que o tempo histórico se acelera e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação” (Paz e Terra, Rio de Janeiro 1993, p.35).
A atual sociedade brasileira, há que se reconhecer, conheceu avanços significativos sob os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e de seus aliados . Nunca ocorreu issso antes nas fases históricas hegemonizadas pelas oligarquias tradicionais que sempre detiveram o poder de Estado, nunca tiveram um projeto de nação, apenas o propósito corporativo de enriquecimento ilimitado. Agora com um Estado pós-democrático (cf;Rubens Casara) e de exceção está ocorrendo celeremente a desmontagem destas políticas aumentando o sofrimento do povo.
Estamos nos aproximando daquilo que Celso Furtado chamava de “provas cruciais”. Talvez como nunca antes em nossa história, atingimos este estágio crítico das “provas” como atualmente após o golpe de 2016. Dada a aceleração da história, impulsionada pela crise sistêmica mundial, seremos forçados a tomar uma decisão: ou aproveitamos as oportunidades reafirmando nossa soberania e garantindo nosso futuro autônomo ou as desperdiçamos e viveremos atrelados ao destino sempre decidido por eles que nos querem condenar a sermos apenas os fornecedores dos produtos in natura que lhes falta e assim voltam a nos recolonizar.
Não podemos aceitar esta estranha divisão internacional do trabalho. Temos que retomar o sonho de alguns de nossos melhores analistas do quilate de Darcy Ribeiro, Luiz Gonzaga de Souza Lima e de Celso Furtado, de Jessé Souza entre outros que propuseram uma reinvenção ou refundacão do Brasil sobre bases nossas, gestadas pelo nosso ensaio civilizatório tão enaltecido e reconhecido mundialmente.
Este desiderato foi profundamente ferido pelo golpe parlamentar que por detrás dele estão as classes dominantes internacionalizadas que tentam impor uma agenda política de um neoliberalismo radical, que lhes devolva os privilégios históricos, ameaçados pelas políticas sociais populares que tiraram da miséria e da invisibilidade milhões de brasileiros pobres.
O sonho de uma reinvenção e refundação do Brasil não pode ser perdido, nem sepultado pela voracidade destruidora dos donos do ter, do poder e do saber. Seu tempo já passou. Cresceu uma nova consciência política, especialmente, a partir dos movimentos sociais populares que se contam às centenas. Aí sempre se coloca a questão: que Brasil nós queremos (cf.L. Boff, Concluir a refundação ou prolongar a dependência, 2018)? Como vamos juntos construí-lo? Com que forças e aliados podemos contar para essa tarefa gigante?
Poderão elas ser coparteiras de uma cidadania nova – a cocidadania e a cidadania ecológica e terrenal – que articula o cidadão com o Estado, o cidadão com o outro cidadão, o nacional com o mundial, a cidadania brasileira com a cidadania planetária, ajudando assim a moldar o devenir humano? Ou elas se farão cúmplices daquelas forças que não estão interessadas na construção do projeto-Brasil porque se propõem inserir o Brasil no projeto-mundo globalizado de forma subalterna e dependente, com as vantagens concedidas às classes opulentas.Pois este é o projeto dos que deram o golpe parlamentar,jurídico e mediático de 2016.
A atual crise brasileira nos força a decidir não que partido apoiamos, mas de que lado estamos. A situação é urgente pois, como advertia pesaroso Celso Furtado: “tudo aponta para a inviabilização do país como projeto nacional” (op.cit. 35). Mas não queremos aceitar como fatal esta severa advertência.
Ainda há tempo, nestas eleições, para mudanças que podem reorientar o país para o seu rumo certo, especialmente agora que, com a crise ecológica, se transformou num peso decisivo da balança e do equilíbrio buscado pelo planeta Terra. Importa crer em nossa missão planetária.
Tudo está a clamar para uma refundação do Brasil sobre outras bases porque as vigentes são altamente antipovo, destrutivas das pessoas, desrespeitosas da natureza, espoliadoras dos bens públicos, violadoras da soberania nacional e negadores de um futuro melhor.
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Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000; A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016; Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010; A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, paixão do mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.
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