(Português) O Eclipse da Ética na Atualidade
ORIGINAL LANGUAGES, 1 Oct 2018
Leonardo Boff | Opinion Sur – TRANSCEND Media Service
28 Set 2018 – Entre os dias10-13 de julho de 2018 realizou-se em Belo Horizonte um congresso internacional organizado pela Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER) em torno dos temas: Religião, Ética e Política. As exposições foram de grande atualidade e de qualidade superior. Refiro-me apenas à discussão acerca do Eclipse da Ética que me coube introduzir.
A meu ver, dois fatores atingiram o coração da ética: o processo de globalização e a mercantilização da sociedade.
A globalização mostrou os vários tipos de ética, consoante as diferenças culturais. Relativizou-se a ética ocidental, uma entre tantas. As grandes culturas do Oriente e as dos povos originários revelaram que podemos ser éticos de forma muito diferente.
Por exemplo, a cultura maia coloca tudo centrado no coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético é criar em todas as pessoas corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do bien vivir y convivir , dos andinos, assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo.
Tal pluralidade de caminhos éticos teve como consequência uma relativização generalizada. Sabemos que não é possível viver sem a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental; são os pré-requisitos para qualquer civilização em qualquer parte do mundo. O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tal é o descalabro ético que estamos vendo.
Pouco antes de morrer, em 2017, advertia o pensador Sigmund Bauman: ”ou a humanidade se dá as mãos para juntos nos salvarmos ou então engrossaremos o cortejo daqueles que caminham rumo ao abismo”. Qual é a ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na Casa Comum?
O segundo grande empecilho é a sociedade de mercado, cuja ética é aquilo que Karl Polaniy chamava já em 1944 de “A Grande Transformação”. É o fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade puramente de mercado. Tudo se transforma em mercadoria, coisa já prevista por Karl Marx em seu texto A miséria da Filosofia de 1848, quando se referia ao tempo em que as coisas mais sagradas como a verdade e a consciência seriam levadas ao mercado; seria “tempo da grande corrupção e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo. A economia especialmente a especulativa dita os rumos da política e da sociedade como um todo. A competição é sua marca registrada e a solidariedade praticamente desapareceu.
O que é o ideal ético deste tipo de sociedade? É a capacidade de acumulação ilimitada e de consumo sem peias, gerando uma grande divisão entre um pequeníssimo grupo que controla grande parte da economia e as maiorias excluídas e mergulhadas na fome e na miséria. Aqui se revelam traços de barbárie e crueldade como poucas vezes na história.
Precisamos refundar uma ética que se enraíze naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja universal e possa ser assumida por todos.
Estimo que, em primeiríssimo lugar, é a ética do cuidado que, segundo a fábula 220 do escravo Higino e bem interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo, constitui o substrato ontológico do ser humano, aquele conjunto de fatores sem os quais jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos. Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vivê-lo e dar-lhe formas concretas, consoantes suas culturas.. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a dominação. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser bio-centrada.
Outro dado de nossa essência humana é solidariedade e a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pelo bio-antropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropóides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem, continua sendo-o ainda hoje.
Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade é a ética da responsabilidade universal, Ou assumimos juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida.
O filosofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou “O Princípio Responsabilidade”, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começam a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico.
Por fim importa resgatar a ética da justiça para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa. Especialmente as instituições devem ser Justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente nosso país, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo mas daquelas elites endinheiradas que sempre viveram do privilégio. Atualmente vivemos sob um regime de exceção, no qual tanto a Constituição e as leis são pisoteadas ou mediante o Lawfare (a interpretação distorcida da lei que o juiz pratica para prejudicar o acusado)
A justiça não vale apenas entre os humanos mas também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos e por isso devem ser incluídos em nosso conceito de democracia sócio-ecológica.
Estes são alguns parâmetros mínimos para uma ética, válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Devemos incorporar uma ética da sobriedade compartida para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China, “uma sociedade moderadamente abastecida”. Isto significa um ideal mínimo e alcançável. Caso contrário, poderemos conhecer um armagedon social e ecológico.
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Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000; A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016; Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010; A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, paixão do mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.
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