(Português) Passados os tempos sombrios de Bolsonaro, surge o sonho da refundação do Brasil

ORIGINAL LANGUAGES, 14 Nov 2022

Leonardo Boff – TRANSCEND Media Service

11 nov 2022 – Vivemos os últmos quase 4 anos sob um governo que não amava o povo e coniderava o pais como uma espécie de capitania hereditária familiar. Mas agora, segundo um cântico famoso de Camões nos Lusíadas, o novo tempo “traz serena claridade, esperança de porto e salvamento”. Por isso cabe esperar e sonhar. Eis alguns pontos de nossa positividade.

1. O povo brasileiro se habituou a “enfrentar a vida” e a conseguir tudo “na luta e na amarra”, quer dizer, superando dificuldades e com muito trabalho. Por que não iria “enfrentar” também o derradeiro desafio de fazer as mudanças necessárias, para criar relações mais igualitárias e acabar com a exclusão e a corrupção, refundando a nação?

2. O povo brasileiro ainda não acabou de nascer. O que herdamos foi a Empresa-Brasil com uma elite escravagista e uma massa de destituídos. Mas do seio desta massa, nasceram lideranças e movimentos sociais com consciência e organização. Seu sonho? Reinventar o Brasil. O processo começou a partir de baixo e não há mais como detê-lo nem pelos sucessivos golpes sofridos como o de 1964 civil-militar e o de 2013 parlamentar-juridico-mediático e todo o descalabro da fase bolsonarista.

3. Apesar da pobreza, da marginalização e da perversa desigualdade social, os pobres sabiamente inventaram caminhos de sobrevivência. Para superar esta anti-realidade, o Estado e os políticos precisam escutar e valorizar o que o povo já sabe e inventou. Só então teremos superado a divisão elites-povo e seremos uma nação não mais cindida mas coesa.

4. O brasileiro tem um compromisso com a esperança. É a última que morre. Por isso, tem a certeza de que Deus escreve direito por linhas tortas. A esperança é o segredo de seu otimismo, que lhe permite relativizar os dramas, dançar seu carnaval, torcer por seu time de futebol e manter acesa a utopia de que a vida é bela e que amanhã pode ser melhor.  A esperança nos remete ao princípio-esperança de Ernst Bloch que é mais que uma virtude; é uma pulsão vital que sempre nos faz suscitar novos sonhos, utopias e projeto de um mundo melhor.

5. O medo é inerente à vida porque “viver é perigoso” (Guimarães Rosa) e porque comporta riscos. Estes nos obrigam a mudar e reforçam a esperança. O que o povo mais quer, não as elites, é mudar para que a felicidade e o amor não sejam tão difíceis. Para isso precisa articular constantemente a indignação face às coisas ruins e a coragem para mudá-las. Se é verdade que somos o que amamos, então construiremos uma “pátria amada e idolatrada” que aprendemos a amar.

6. O oposto ao medo não é a coragem. É a fé de que as coisas podem ser diferentes e que, organizados, podemos avançar. O Brasil mostrou que não é apenas bom no carnaval e no futebol. Mas  pode ser bom na resistência indígena, negra, na agricultura, na arquitetura, na música e na sua inesgotável alegria de viver.

7. O povo brasileiro é religioso e místico. Mais que pensar em Deus, ele sente Deus em seu cotidiano que se revela nas expressões: “graças a Deus”, “Deus lhe pague”, “fique com Deus”. Deus para ele não é um problema, mas a solução de seus problemas. Sente-se amparado por santos e santas e por bons espíritos como os orixás que ancoram sua vida no meio do sofrimento.

8. Uma das características da cultura brasileira é a jovialidade e o sentido de humor, que ajudam  aliviar as contradições  sociais. Essa alegria jovial nasce da convicção de que a vida vale mais do que qualquer outra coisa. Por isso deve ser celebrada com festa e diante do fracasso, manter o humor que o relativiza e o torna suportável. O efeito é a leveza  e o entusiasmo que tantos admiram em nós.

9. Há um casamento que ainda não foi feito no Brasil: entre o saber acadêmico e o saber popular. O saber popular é “um saber de experiências feito”, que  nasce do sofrimento e dos mil jeitos de sobreviver com poucos recursos. O saber acadêmico nasce do estudo,  bebendo de muitas fontes. Quando esses dois saberes se unirem teremos reinventado um outro Brasil. E seremos todos mais aptos para enfrentar os novos desafios.

10. O cuidado pertence à essência do humano e  de toda a vida. Sem o cuidado adoecemos  e morremos.. Com cuidado, tudo  é protegido e dura muito  mais. O desafio hoje é entender a  política como cuidado do Brasil, de sua gente, especialmente dos mais pobres e discriminados,  da natureza, da Amazônia, da educação, da saúde, da justiça. Esse cuidado é a prova de que amamos  o nosso pais.

11. Uma das marcas do povo brasileiro é sua capacidade de se relacionar com todo mundo, de somar, juntar, sincretizar e sintetizar. Por isso, em geral, ele não é intolerante nem dogmático. Ele gosta  de conviver com o diferente. Estes valores são  fundamentais para uma planetização de rosto humano. Estamos mostrando que ela é possível e a estamos construindo. Infelizmente nos últimos anos, especialmene nas eleições presidenciais de 2022, surgiu, contra a nossa tradição, uma onda de Fake News, de ódio, discriminação, fanatismo, homofobia e desprezo pelos pobres (porofobia, o lado sombrio da cordialidade, segundo Buarque de Holanda) que nos mostram que somos, como todos os humanos, sapiens e demens e agora mais demens.. Mas se trata sempre de uma doença e não da sanidade das religiões,igrejas e movimentos. Mas isso, seguramente, passará e predominará a convivência mais tolerante e apreciadora das diferenças.

12. O Brasil é a maior nação neolatina do mundo. Temos tudo para sermos  também a maior civilização dos trópicos, não imperial, mas solidária com todas as nações, porque incorporou em si representantes de 60 povos diferentes que para aqui vieram. Nosso desafio é mostrar que o Brasil pode ser, de fato, uma pequena antecipação simbólica de um paraíso não totalmente perdido e sempre resgatável: a humanidade unida, una e diversa,  sentados à mesa numa fraterna comensalidade, desfrutando dos bons frutos de nossa boníssima,  grande, genersosa Mãe Terra.

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Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000;  A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016;  Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010;  A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, Paixão do Mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018; “Destino e Desatino da Globalização” em: Do iceberg à Arca de Noé, Mar de Ideias, Rio 2010 pp. 41-63.

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