(Português) Morre Gustavo Gutiérrez, Pai da Teologia da Libertação

ORIGINAL LANGUAGES, 28 Oct 2024

Leonardo Boff – TRANSCEND Media Service

27 Out 2024 – No dia 22 de outubro do corrente ano, morreu em Lima o iniciador da TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO com a idade de 96 anos,Gustavo Gutiérrez (1928-2024).

Era um entranhável amigo com o qual juntos, a partir dos anos de 1970, colaboramos para fazer uma teologia adequada à situação da América Latina que é feita de injustiças sociais e de pobreza aviltante.

Como para todo teólogo, o centro de sua indagação é Deus. Mas primeiramente Deus como experiência de vida em especial a partir do sofrimento humano e só depois como reflexão reverente.

O tema perturbador que sempre o acompanhou pela vida afora era o sofrimento. Ele mesmo sofreu de poliomelite ficando  por anos em cadeira de rodas. Depois, operado, andava com dificuldade. Era pequeno, manco, atacarrudo, cara de índio quéchua e dotado de uma inteligência extraordinária, criativa, cheia de humor e de belas “trouvailles” como esta:’os políticos só pensam numa intenção, isto é, na segunda”.Em suma, era fundamentalmente um hom em bom, simples, humilde e espirituoso.

Sua grande questão, com fundo biográfico, era: como compreender Deus diante do sofrimento do inocente; como compreender Jesus ressuscitado em um mundo onde as pessoas pela opressão morrem antes do tempo; como encontrar o Deus libertador em um mundo onde falta fraternidade e solidariedade?

A mensagem cristã não apenas concerne à vida eterna e ao Reino de Deus, mas oferece estímulos para melhorar a vida presente, especialmente a dos pobres e oprimidos, na convicção de que a vida eterna e o Reino de Deus começam já aqui na Terra. De mais a mais o próprio Jesus histórico foi um pobre e não tinha onde pôr a cabeça. Dai que entende a teologia,segundo Gutiérrez como “uma reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra da revelação”.

O livro fundador de 1971 foi TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, PERSPECTIVAS. Curiosamente, neste mesmo ano, sem que nos conhecêssemos, eu escrevia JESUS CRISTO LIBERTADOR, Juan Luis Segundo no Uruguai e Segundo Galea no Chile trabalhavam também numa perspectiva de libertação. Não nos conhecíamos mas ouvíamos um chamado, creio, que vindo do Espírito (Hegel diria do Weltgeist) e nós éramos apenas os meros microfones que realçavam o som  desse chamado.

O eixo estruturador deste tipo de teologia é a opção não excludente pelos pobres, contra a pobreza e a favor da justiça social e da libertação. Sempre se apoiando na tradição dos profetas e da prática do Jesus histórico. Bem afirmava Gustavo:” Os pobres são os privilegiados de Deus não porque são cristãos, religiosos ou bons, mas porque Deus, identificando-se com eles, é bom e misericordioso“. O Deus vivo, o Deus da vida opta por aqueles que menos vida têm. Este é o fundamento teológico da opção pelos pobres, por sua vida oprimida e por sua libertação.

Homem profundamente espiritual, viveu com os pobres no bairro periférico Rimac de Lima. Dessa inserção nasceram quase todas as suas obras, especialmente BEBER DO PRÓPRIO POÇO; O DEUS DA VIDA; A FORÇA HISTÓRICA DOS POBRES; ONDE DORMIRÃO OS POBRES; EM BUSCA DOS POBRES DE JESUS CRISTO: O PENSAMENTO DE BARTOLOMEU DE LAS CASAS e outros mais.

Como outros teólogos da libertação sofreu incompreensões e perseguições, especialmente do Cardeal de Lima, Cipriani, da Opus Deus, com a acusação de que seria uma teologia marxista. Essa ideia era reforçada pelo maior opositor, diria até, perseguidor da Teologia da Libertação, o Cardeal Lopez Trujllo de Mdellin na Colômbia. Essa acusação, não se sustenta e sempre foi assacada contra todos, como a Dom Helder Câmara, que colocam a situação dos pobres como vítimas de uma sociedade de injustiças e de exploração que demanda uma transformação histórico-social. Na América Latina se estendeu o conceito de pobre para os indígenas, os negros, as mulheres, pobres econômicos, culturais e de outra opção sexual.Assim surgiram as várias vertentes da Teologia da libertação. Para cada grupo específico, o seu método adequado e  sua correspondente libertação. O método é sempre este: ver a realidade sofrida;julgar com meios científicos e à luz da fé; agir para transformar esta anti-realidade tendo como protagonistas principais os próprios oprimidos.

Daí a libertação a partir da fé. Marx nunca foi pai nem padrinho da Teologia da Libertação como a acusam, sem fundamento, alguns ainda hoje. Sua inspiração se encontra nas fontes da fé cristã, nas Escrituras e na tradição de figuras como São Francisco de Assis, São Vicente de Paulo e outros que deram centralidade aos pobres.

Por sua seriedade recebeu inúmeros prêmios e títulos de doutor honoris causa. Não dava importância a estes reconhecimentos, pois se colocava sempre no seu lugar de origem, a pobreza e os pobres com os quais compartilhava a vida.O Papa Francisco o recebeu em Roma como gesto de reconhecimento de sua reflexão com uma riqueza para toda a Igreja. Por ocasião das exéquias, o Papa enviou esta curta mensagem:” Hoy pienso a Gustavo Gutiérrez, un grande, un hombre de Iglesia que supo estar callado cuando tenía que estar callado, supo sufrir cuando le tocó sufrir, supo llevar adelante tanto fruto apostólico y tanta teología rica. Que en paz descanse”.

Nós que o conhecemos no seu trabalho e no seu dia a dia testemunhamos que viveu e morreu com claros sinais de santidade pessoal. E guardaremos muita saudade dele.

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Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000;  A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016;  Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010;  A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, Paixão do Mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018; “Destino e Desatino da Globalização” em: Do iceberg à Arca de Noé, Mar de Ideias, Rio 2010 pp. 41-63.

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