(Português) Uma Dissertação Histórico-Filosófica sobre Nossa Barbárie

ORIGINAL LANGUAGES, 15 Feb 2021

Leonardo Boff | Opinion Sur – TRANSCEND Media Service

10 fev 2021 – Existem inúmeras análises excelentes do antifenômeno Jair Messias Bolsonaro, sociológicas, históricas e econômicas. Acho que devemos cavar mais fundo para capturar o surgimento desse Negativo em nossa história.

A reflexão ocidental, devido aos limites culturais de nosso individualismo enraizado, dificilmente desenvolveu categorias analíticas para todos históricos. Na Filosofia da História, Hegel é cheio de preconceitos, até mesmo sobre o Brasil, e tem poucas categorias exploráveis. Arnold Toynbee, em seus 10 volumes sobre a história do mundo, trabalha com um esquema fértil mas limitado: Desafio e resposta, com a desvantagem de não dar relevância aos conflitos de todos os tipos inerentes à história. A Escola Francesa dos Annales, em suas variações (Lefbre, Braudel, Le Goff) incluiu várias ciências, mas não nos ofereceu uma leitura da história como um todo. As categorias desenvolvidas por Ortega y Gasset em seu famoso estudo sobre Crisis Schemes and Other Essays (1942) ainda são inspiradoras.

Temos que tentar pensar por nós mesmos e nos perguntar com uma atitude filosófica, isto é, que busque causas mais profundas do que as meramente analíticas dos cientistas: por que no Brasil essa sinistra figura histórica tornou-se chefe de Estado, que desafia qualquer entendimento psicológico, ético e político?

Devemos dizer de antemão que tudo o que existe não é fortuito porque é fruto de algo pré-existente, de longa duração, que corresponde à razão elucidar. Além disso, deve-se pensar sempre dialeticamente: junto com o negativo e as sombras, eles sempre acompanham as dimensões positivas e carregam alguma luz. Não nos é permitido ter apenas luz ou escuridão. Todas as realidades são crepúsculo, misturando luz e sombra. Mas o nosso foco nesta reflexão está nas sombras porque são elas que nos causam problemas.

Vou fazer uso de algumas categorias: sombras reprimidas, a teoria do caos destrutivo e gerador, a compreensão transpessoal do carma no diálogo entre Toynbee e o filósofo japonês Daisaku Ikeda, e os princípios de thanatos e eros, associados à humana condição de sapiens e simultaneamente demens.

As quatro sombras reprimidas pela consciência coletiva

A consciência brasileira é dominada por quatro sombras nunca reconhecidas e integradas até hoje. Eu entendo a categoria “sombra” no sentido psicanalítico da escola de C.G. Jung e seus discípulos, que a tornaram uma categoria amplamente aceita por outras escolas. A sombra seria o conteúdo escuro e negativo que uma cultura com seu consciente / inconsciente coletivo se recusa a assimilar e, por isso, reprime e se esforça para distanciá-lo da memória coletiva. Essa repressão impede um processo coerente e sustentado de individuação nacional.

O primeiro a aparecer é a sombra do genocídio indígena. Segundo Darcy Ribeiro, inicialmente havia uma população de cerca de 5 a 6 milhões de indígenas com centenas de línguas, únicas na história do mundo. Eles foram dizimados. Os atuais 900.000 permanecem. Lembremos o massacre de Mem de Sá em 31 de maio de 1580, que liquidou os tupiniquim da Capitania de Ilhéus. Por um quilômetro e meio ao longo da praia, a poucos metros um do outro, estavam centenas de corpos de indígenas assassinados, contados como glória ao Rei de Portugal.

Pior ainda foi a guerra declarada oficialmente por D. João VI, recém-chegado ao Brasil fugindo das tropas de Napoleão, que dizimaram os botocudos (Krenak) no vale do Rio Doce, por considerá-los incivilizáveis ​​e incatecáveis. Esta guerra oficial manchará para sempre a memória nacional. Ailton Krenak, cujos antepassados ​​sobreviveram, lembra-nos esta vergonhosa guerra oficial de um impiedoso imperador, considerada boa.

O atual governo, de supina ignorância em antropologia, considera os povos indígenas originais como subumanos, que devem ser forçados a entrar em nossos códigos culturais para serem humanos e civilizados. O descuido que tem demonstrado face às suas reservas invadidas e ao seu abandono perante a Covid-19 faz fronteira com o genocídio, estando susceptível de ser levado ao Tribunal Penal Internacional por crimes contra a Humanidade.

A segunda sombra é nosso passado colonial. Não houve uma descoberta do Brasil, mas sim uma invasão total, destruindo o idílio pacífico inicial descrito por Pero Vaz de Caminha. Houve um encontro profundamente desigual de civilizações. Logo o processo de ocupação e violência começou devido à riqueza aqui. Todo processo colonialista é violento. Implica invadir terras, subjugar os povos, obrigá-los a falar a língua do invasor, incorporar suas formas de organização social e a submissão desumanizante completa dos dominados. Desse processo de submissão surgiu o complexo mestiço, pensando que só o que vem de fora ou de cima é bom, sempre curvando a cabeça e abandonando qualquer inconstância da autonomia e do próprio projeto.

A mentalidade de muitos dos estratos dirigentes ainda é considerada de certa forma colonial, porque imita o estilo de vida e assume os valores de seus patrões, que variam ao longo da nossa história. Hoje é uma expressão humilhante para toda a nação que o atual chefe de Estado faça uma viagem especial aos Estados Unidos, saúde a bandeira americana e empreste um rito de vassalagem explícito ao presidente Donald Trump, extravagante, egocêntrico e considerado por notáveis analistas americanos como os mais estúpidos da história política daquele país.

A terceira sombra, a mais perversa de todas, é a da escravidão, nossaverdadeira barbárie. O escritor e historiador Laurentino Gomes, em seus dois volumes sobre a escravidão (2019/2020), fala-nos do inferno desse processo de desumanidade. O Brasil foi campeão da escravidão. Só ele importou, a partir de 1538, cerca de 4,9 milhões de africanos que foram escravizados aqui. Das 36 mil viagens transatlânticas, 14.910 foram destinadas aos portos brasileiros.

Essas pessoas escravizadas eram tratadas como mercadorias e chamadas de “peças”. A primeira coisa que o comprador fez para “domesticá-los e discipliná-los” foi puni-los, “que haja chicotadas, correntes e algemas”. A história da escravidão foi escrita pela mão branca, apresentando-a como mole, quando na realidade era extremamente grosseira e continua hoje contra a população negra, mulata (54,4% da população) e pobre, como demonstrou de forma irrefutável Jessé Souza em A elite do atraso: da escravidão ao Bolsonaro (2020). Com a abolição da escravidão em 1888, ela não recebeu nenhuma indenização, foi deixada à vontade e hoje constitui a maioria das favelas.  Nem a menor humanidade nunca foi reconhecida. A classe dominante transferiu seu ódio aos escravos para ela, acostumou-se a humilhá-la, ofendê-la até que perdessem o senso de dignidade.

Esta sombra pesa enormemente na consciência coletiva e é a mais reprimida, com a mentira de que aqui não há racismo nem discriminação. No governo, isso foi desmascarado pela violência sistemática contra essa população, estimulada pelo próprio chefe de Estado, que mantém uma política necrófila. Essa sombra por sua desumanidade inspirou gente sensível, como o poeta Castro Alvez. Seus versos ressoarão para sempre em Vozes d’Africa:

“Oh Deus, onde você está para não responder? Em que mundo, em que estrela você se esconde / se esconde nos céus? Há dois mil anos te enviei meu grito / que em vão, desde então, viaja pelo infinito… / Onde estás, Senhor Deus?”.

Esse choro ainda é tão penetrante hoje quanto era naquela época.

Jessé Souza, em sua obra já citada, mostrou de forma convincente como a classe dominante, para evitar qualquer avanço das maiorias marginalizadas, projetava sobre elas todo o fardo de negatividades que acumulava em face dos escravos, aquela “massa damnata”: exclusão, discriminação e ódio verdadeiro que nos espantam e revelam níveis incríveis de desumanização.

A quarta sombra é a constituição de um Brasil apenas para poucos. Raymundo Faoro (Os donos do poder) e o historiador e acadêmico José Honório Rodrigues (Conciliação e reforma no Brasil, 1982) nos contaram sobre a violência com que o povo foi tratado para instaurar a ordem, fruto da conciliação entre as classes opulentas, sempre com a exclusão deliberada do povo.

José Honório Rodrigues escreve:

«A maioria dominante sempre foi alienada, anti-progressista, antinacional e não contemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo; negou seus direitos, destruiu suas vidas, e assim que o viu crescer, aos poucos negou sua aprovação, conspirou para colocá-lo de volta na periferia, lugar que ele acredita pertencer a eles» (Reconciliação e reforma no Brasil, 1982, p. 16).

Não foi exatamente isso que a maioria dominante e seus aliados fizeram primeiro com Dilma Rousseff e depois com o candidato Lula? Mudam as estratégias, mas nunca os propósitos de um Brasil só para eles.

Nunca houve um projeto nacional que incluísse a todos. Um Brasil sempre foi projetado para poucos. Os outros que incomodam. Assim, não surgiu uma nação, mas sim, como Luiz Gonzaga de Souza Lima mostrou em detalhes em um livro que com certeza será um clássico, A refundação do Brasil: rumo a uma civilização biocentrada (2011), foi fundada a Great Brazil Company, internacionalizada desde o seu início, com o objetivo de atender os mercados mundiais de ontem até hoje. Assim, temos um Brasil profundamente dividido entre poucos ricos e as grandes maiorias pobres, um dos países mais desiguais do mundo, ou seja, um país violento e cheio de injustiças sociais. Machado de Assis já havia observado que há dois brasileiros, o oficial (estes poucos) e o real (as grandes maiorias excluídas).

Uma sociedade montada na bifurcação, numa perversa injustiça social, nunca criará uma coesão interna que lhe permita saltar para formas de convivência mais civilizadas. Aqui sempre reinou um capitalismo selvagem que nunca conseguiu ser civilizado. E quando os filhos e filhas da pobreza conseguiram acumular uma força política básica suficiente para alcançar o poder central e satisfazer as demandas básicas das populações humilhadas e ofendidas, logo os descendentes da Casa Grande e a nova burguesia nacional se organizaram para tornar impossível esse tipo de governo de inclusão social. Desferiram um golpe vergonhoso, parlamentar, mediático e jurídico, para garantir os níveis de acumulação considerados dos mais elevados do mundo e para manter os pobres no seu devido lugar, na periferia e na pobre e miserável marginalidade.

O escritor Luiz Fernando Veríssimo, no Twitter, em 6 de setembro de 2020, resumiu bem: “O ódio está no DNA da classe dominante brasileira, que historicamente destrói, com armas se necessário, qualquer ameaça ao seu domínio, seja qual for a sua sigla”. Essa classe de ricos, que nem mesmo é elite porque supõe um certo cultivo da humanidade e da cultura, apoia o atual governo ultradireitista e fascista porque sua forma abusiva de acumulação não a ameaça; pelo contrário, o ministro das Finanças, Guedes, discípulo das escolas de Viena e de Chicago, surge como a grande demolição da soberania nacional. O presidente não sabe ou não entende nada sobre o que pode ser soberania nacional.

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Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000;  A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016;  Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010;  A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, Paixão do Mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018; “Destino e Desatino da Globalização” em: Do iceberg à Arca de Noé, Mar de Ideias, Rio 2010 pp. 41-63.

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