(Portuguese) A Falácia da Intervenção “Humanitária” na Síria

ORIGINAL LANGUAGES, 6 Aug 2012

Larissa Ramina – Carta Maior

A questão internacional central, e também o principal embate da encruzilhada síria, está na perigosa articulação do conceito de “intervenção humanitária”. O intelectual e escritor belga Jean Bricmont, em recente fala na Unesco, chama a atenção para o que rotulou de “noção falaciosa de guerra humanitária”, e denuncia um condicionamento ideológico proveniente das mídias, que segundo ele visam a tornar uma intervenção militar na Síria aceitável aos olhos da opinião pública mundial.

A Síria enfrenta, há mais de um ano, uma onda de contestações em relação ao regime de Bashar Al Assad. No último mês de abril, foi decretado um cessar-fogo conforme o plano de paz elaborado pelo emissário especial da ONU e da Liga Árabe, e ex-Secretário-Geral das Nações Unidas Kofi Annan. Mais de 300 observadores da ONU foram enviados ao país, mas as hostilidades perduram. No momento, apenas a metade desse número permanece, em razão da absoluta falta de segurança.

A Missão de Observação da ONU na Síria, como a força é conhecida oficialmente, consiste em 300 observadores militares desarmados acompanhados por cerca de 100 funcionários civis de apoio. Foi implantada para supervisionar o cessar-fogo, que tem sido fortemente desrespeitado, e em meados de junho parou de realizar patrulhas diante da intensificação dos combates. No dia 20 de julho, o Conselho de Segurança da ONU votou pela extensão do mandato da missão por 30 dias, embora a escalada da violência tenha impossibilitado a permanência dos observadores no país.

O conflito na Síria desafia em várias frentes. No terreno, violentos combates resultaram no número astronômico de 14000 mortos desde o início da luta armada, segundo observadores internacionais. Na frente diplomática, os partidários de uma ação mais severa contra o regime de Bachar Al Assad, diga-se uma intervenção militar justificada na defesa dos direitos humanos, opõe-se aos aliados do regime, Rússia em primeiro lugar e China, que há poucos dias reiteraram no Conselho de Segurança da ONU sua oposição a qualquer intervenção militar, temendo uma reedição do cenário líbio.

Os Estados Membros da Organização de Cooperação de Shanghai (OCS), que reagrupa entre outros países a China e a Rússia, além de terem se pronunciado contra qualquer possibilidade de intervenção militar na Síria, também condenaram qualquer imposição relativa à mudança de regime no país, e também quaisquer sanções unilaterais, insistindo na necessidade de fazer cessar toda a violência, seja qual for sua origem, encorajando o lançamento de um amplo diálogo nacional com base na independência, integridade territorial e soberania da Síria. Assim, exaltaram os esforços da ONU com vistas a encontrar uma solução política para a crise, que estaria no interesse tanto da população síria quanto da comunidade internacional, entendida como a comunidade de todos os países, ocidentais e não ocidentais.

Claro está que a questão internacional central, e também o principal embate da encruzilhada síria, está na perigosa articulação do conceito de “intervenção humanitária”. O intelectual e escritor belga Jean Bricmont, em recente fala na Unesco, chama a atenção para o que rotulou de “noção falaciosa de guerra humanitária”, e denuncia um condicionamento ideológico proveniente das mídias, que segundo ele visam a tornar uma intervenção militar na Síria aceitável aos olhos da opinião pública mundial.

Para embasar sua tese, Bricmont constata que historicamente, todas as guerras foram sempre justificadas em intenções altruístas, como o cristianismo e sua missão civilizadora, o fardo do “homem branco”, Hitler e a defesa contra o bolchevismo, depois a luta contra o terror, e hoje a chamada guerra pelos direitos humanos, intitulada de “ingerência humanitária”. Nessa seara, o escritor desenvolve uma crítica exemplificando com a hipótese de que, se a Rússia promovesse uma ingerência humanitária na Síria, ou no Bahrein, estar-se-ia diante da possibilidade concreta de uma terceira guerra mundial, já que as potências ocidentais, inequivocamente, não aceitariam que potências não ocidentais tentassem intervir no Oriente Médio.

A paz mundial, ressalta, depende da ordem internacional construída após a Segunda Grande Guerra, que por sua vez assenta-se sobre o respeito da soberania nacional dos Estados. Foi a ingerência da Alemanha na Tchecoslováquia, relembra, depois na Polônia, em nome da defesa das minorias, que desencadeou aquele conflito mundial, sorte de pretexto que também foi utilizado na carnificina do Kosovo e no Iraque em relação aos curdos.

A ideia central é que a política intervencionista das grandes potências, embora esteja sempre lastreada em motivos nobres, consiste em uma violação total da ordem internacional estabelecida em 1945 com a criação da Organização das Nações Unidas, e não afasta o risco de conduzir a uma nova grande guerra.

Por outro lado, Bricmont constata que o mundo seria melhor se o Ocidente optasse por uma política de paz, ao invés de investir seus recursos em armamentos e equipamentos militares em geral. Essa política de paz deveria ter como pilares a cooperação e o diálogo interestatal amplo, incluindo toda a comunidade internacional, e logo Rússia, China, Irã e Síria. No entanto, as mídias dificultam enormemente essa possibilidade, em razão do que rotula de “bombardeamento midiático”. Em sua leitura Barack Obama, por exemplo, mesmo estando em desacordo com a política de Netanyahou, nada pode frente ao doutrinamento da mídia; ao passo que é extraordinário que a Europa em crise agonizante pretenda ditar a Rússia o que fazer, quando esta tem a aliança da China, representa o movimento dos não-alinhados na questão síria, e é aliada do Irã.

O intelectual belga relembra que por ocasião da guerra na Líbia, praticamente não havia desacordo nas classes políticas em relação à intervenção militar, cenário que se repete hoje na Síria. O debate, segundo ele, tornou-se quase impossível em razão do que chamou de “arcos reflexos”, que vêm doutrinando várias gerações, e que estariam na ideia dos “novos Hitlers” e na culpabilização pelo Holocausto. Bricmont toma todo o cuidado de explicar que não se trata, em hipótese alguma, de negar o Holocausto, nem de menosprezá-lo enquanto acontecimento trágico e abominável, mas de criticar a forma como tem sido explorado politicamente, por meio da manipulação de variadas situações com base nos argumentos dos novos Hitlers ou dos novos Holocaustos, para justificar o emprego da violência em prol de interesses econômicos. Essa matriz ideológica impediria qualquer debate sério acerca da realidade do mundo contemporâneo, seja no campo da esquerda ou da direita.

Faltaria, portanto, a reflexão sobre a própria essência da militarização, dos conflitos que se perpetuam, e sobre o tipo de contribuição que aportam à defesa dos direitos humanos. Bricmont critica ferozmente aqueles que se utilizam da ideologia dos direitos humanos como um pretexto para a guerra, quando ele mesmo tende a ver naquela ideologia uma verdadeira causa sui generis para a guerra, porque empresta ao Ocidente uma ilusão de grandiosidade que ele não tem mais desde o processo descolonizatório e a articulação das potências emergentes. Lamenta, ainda, não saber se a Síria será agredida militarmente, muito embora os rebeldes estejam sendo intensamente armados de forma a criar o caos naquele país por tempo indeterminado.

A posição de Bricmont, e que deveria ser partilhada, é por princípio contrária a qualquer hipótese de “ingerência humanitária” e, portanto, independente de relação com regimes políticos específicos, como o regime de Bashar Al Assad. Também não se caracteriza como uma bandeira de esquerda, de direita, ou de centro. Logo, não é relevante discutir quem está pró ou contra Assad, ou os níveis de crueldade impetrados pelo governo sírio, até mesmo porque organizações internacionais como a Human Rights Watch vem denunciando a violação dos direitos humanos por todas as partes do conflito, incluindo a oposição armada síria. Trata-se, ao contrário, de sustentar uma política global pacífica, antagônica a qualquer sorte de violência e aplicável em todas as frentes, incluindo Palestina, Irã, Coreia do Norte, Cuba, Venezuela, Líbia, Síria. Não se trata, portanto, da questão síria em particular.

No Brasil, Dilma Rousseff insiste em soluções diplomáticas para o conflito na Síria, apoiando-se em exemplos de iniciativas fracassadas de construção da paz, como as intervenções militares externas no Afeganistão e no Iraque. Cite-se que recentemente, europeus e norte-americanos decidiram pela expulsão dos representantes diplomáticos sírios de suas capitais em represália ao massacre de Houla, que deixou 108 mortos. O Brasil retirou seus diplomatas do país, mas manteve relações diplomáticas. A presidência brasileira defende que se edifique um consenso, uma posição comum no Conselho de Segurança da ONU, comum no sentido da construção conjunta, de todas as nações do planeta, de um caminho em que a paz seja articulada por meios diplomáticos multilaterais efetivos, e não militares. Na Síria ou em qualquer outra parte do planeta.
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Larissa Ramina, Doutora em Direito Internacional pela USP, Professora Substituta de Direito Internacional da UFPR, Professora do Programa de Mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia da UniBrasil.

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