(Português) A Desumanidade Atual: Perdeu-se a Humanidade do Ser Humano?

ORIGINAL LANGUAGES, 30 Oct 2023

Leonardo Boff – TRANSCEND Media Service

24 out 2023 – Nietzsche repetiu muitas vezes que o desumano (allzumenschlich) pertence também ao humano. Isso se deriva do fato de nossa condição humana ser simultaneamente racional e irracional, caótica e harmoniosa. Não como defeito de criação, mas como  como dado de nossa realidade histórica. Também o processo cosmogênico mostra a mesma característica, pois caos e cosmos  andam juntos.

Temos a ver, portanto, com  uma constante cosmológica, social e  individual. Que isso é verdade vemos na pérfida guerra Israel-Hamas.Este último praticou atos medonhos de terrorismo, de matanças indiscriminadas de habitantes de Israel e sequestro de duas centenas de pessoas. Este último retaliou com dobrada violência, matando também indiscriminadamente pessoas, especialmente crianças e mães, arrasando hospitais e lugares sagrados. Mostrou-se um estado terrorista. Em ambos os lados verdadeiros crimes de guerra beirando o genocídio embrionário.

Todos ficamos estarrecidos: como é possível tanta desumanidade? O que somos finalmente? Por que Deus se cala diante de tanta maldade? Não são poucos os que desesperam da humanidade. Merecemos ainda viver sobre este planeta? Uma sombra de tristeza e de abatimento marca o rosto de chefes de estado, de jornalistas e de praticamente todos que aparecem nas telas de televisão e entre nós. De modo comovedor de nos fazer chorar comparecem as figuras ensanguentadas de palestinos, carregando em seus braços filhinhos e filhinhas assassinadas.

Ficamos abatidos e indignados porque dentro de nós se faz ouvir o outro lado de nossa realidade: somos principalmente seres de amor, de empatia, de solidariedade, de compaixão e de renúncia à toda vingança. Contra toda a maldade, (sombra) reafirmamos essa dimensão de bondade (luz). De forma impactante deixou por escrito pouco antes de ser morta sob os escombros em Gaza, a romancista e poeta  palestina  Heba Abu Nada: “somos pessoas Justas e do lado da Verdade”. Sim, ela nos confirma que somos principalmente justos e do lado da verdade, do amor e da compaixão.

Cabe reconhecer,no entanto, que o lado irracional e perverso (embora nunca se perde totalmente o momento racional pertencente à natureza humana) é predominante naqueles que conduzem a guerra,especialmente Israel,os USA e seus aliados europeus, a comunidade internacional (quem são?) que se mantém calada e inerte face à morte de milhares de civis, crianças inocentes nos bombardeios israelenses. Parece que decretou-se a morte lenta com o fechamento de todas as fronteiras, de comida, de água, de medicantos  e de energia.

Este é o cenário dos poderes dominantes, dos donos da guerra, mais interessados na disputa geopolítica e no bilionário negócio das armas do que em salvar vidas humanas. Afinal, dizem, “são palestinos, sub-humanos” e tidos por grupos extremados de Israel, até pelo ministro da defesa como “animais” e assim devem ser tratados, eventualmente, exterminados.

Tal cenário é contrastado pelas multidões que no mundo inteiro,no mundo árabe, nos USA, na França, na Alemanha, em outros países e também no Brasil que se manifestam aos milhares nas ruas é se colocam ao lado dos castigados coletivamente, dos mais fracos, dos palestinos da Faixa de Gaza, mostrando que querem humanidade e não ataques de desumanidade. Mesmo em situação de guerra existem leis (ius in bello) que, se violadas, configuram crimes de guerra como matar inocentes crianças, atacar hospitais, escolas e lugares sagrados. É o que vem sistematicamente ocorrendo nos bombardeios.

O que nos diz a melhor ciência contemporânea, a ciência da vida, da Terra e so cosmos? Ela nos convence de que o nosso lado humano e luminoso pertence ao DNA (manual de instruções da criação humana) de nossa natureza. James Watson e Francis Crick em 1953 descreveram a estrutura em hélice da molécula DNA.Watson em seu livro”DNA, o segredo da vida”(Companhia das Letras 2005) confirmando o que São Paulo escreveu sobre o amor na primeira epístola aos Coríntios, assevera:”Tão fundamental é o amor à natureza humana que estou certo de que a capacidade de amar está inscrita em nosso DNA – um São Paulo secular diria que o amor é a maior dádiva de nossos genes à humanidade…esse impulso,creio, salvarguará nosso futuro”(p.434).

Não outra coisa sustentam os neurocientistas e biólogos (confira as opiniões reunidas por Michael Tomasello no livro “Por que nós cooperamos”(Warum wir kooperieren,Berlim 2010):”No altruísmo um se sacrifica pelo outro.Na cooperação muitos se unem em vista do bem comum”(p.14). O conhecido neurobiólogo Joachim Bauer do famoso Instituto Max Plank, no livro “Princípio humanidade:por que nós, por natureza, cooperamos e no outro “O gene cooperativo (Das cooperative Gen.Hamburg  2006 e 2008) comprova: “Os gens não são autômanos e de modo algum ‘egoistas’(como quer falsamente Richard Dawkins),mas se agregam uns aos outros nas células da totalidade do organismo…todos os sistema vivos se caracterizam pela permanente cooperação e comunicação molecular para dentro e para fora”(p.183-184).

Tais afirmações que poderíamos multiplicar com outros grandes cientistas, mostram que toda violência e guerra são contra a nossa natureza mais essencial, feita de cooperação, amor, solidariedade e compaixão,embora, como afirmamos anteriormente, exista também o impulso de morte e de agressão. Mas este pela civilização, pelas religiões, pela ética e pela participação política de todos (democracia ecológico-social), pelo esporte e pala arte, possa ser mantido sob controle, como aliás, sugeria Sigmund Freud respondendo a Albert Einstein.

O que estamos assistindo é a falta total de controle sobre esta dimensão obscura e desumana (também demasiadamente humana) que está produzindo mortes e destruição. Aqueles que poderiam se empenhar na contenção da desumanidade e na manutenção de nossa humanidade  mínima, estão, vergonhosamente inertes face à limpeza étnica perpetrada pelo estado de Israel. Enquanto isso milhares estão sendo mortos sob escombros produzidos pelos implacáveis ataques pela força aérea israelense. Curiosamente, os USA estão gastando 100 bilhões de dólares para produzir armas de morte e sustentar a guerra na Ucrânia e a guerra Israel-Hamas, apoiando incondicionalmente o estado de Israel dando luz verde para um desproporcional contra-ataque. Enquanto isso, a China está empenhando 100 bilhões de dólares para implementar pacificamente o Cinturão e a Rota da Seda. São duas modalidades contrárias de política, uma propiciando melhoria dos países, especialmente dos mais pobres pelo caminho da paz e a outra da guerra, sempre usada pelos USA no Iraque, Afgenistão, Síria, Líbia e em outros tantos lugares para asseguar sua excepcionalidade e seu poder unipolar.

Basta. O que as maiorias da humanidade desejam desesperadamente é um mundo onde todos possam caber em paz, com o suficiente e o decente para todos, na mesma Casa Comum, agora em guerra e sob o fogo.

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Leonardo Boff é um escritor, teólogo e filósofo brasileiro, professor emérito de ética e filosofia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebedor do Prêmio Nobel Alternativo da Paz do Parlamento sueco [Right Livelihood Award]em 2001, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, e professor visitante em várias universidades estrangeiras como Basel, Heidelberg, Harvard, Lisboa e Salamanca. Expoente da Teologia da Libertação no Brasil, foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. É respeitado pela sua história de defesa pelas causas sociais e atualmente debate também questões ambientais. Colunista do Jornal do Brasil, escreveu os livros Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Vozes 2000;  A Terra na palma da mão: uma nova visão do planeta e da humanidade,Vozes 2016; Cuidar da Terra – proteger a vida: como escapar do fim do mundo, Record 2010; A hospitalidade: Direito e dever de todos, Vozes 2005; Paixão de Cristo, Paixão do Mundo, Vozes 2001; Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018; “Destino e Desatino da Globalização” em: Do iceberg à Arca de Noé, Mar de Ideias, Rio 2010 pp. 41-63.

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