(Português) Johan Galtung – Transcender e Transformar: Uma Introdução ao Trabalho de Conflitos

ORIGINAL LANGUAGES, 24 Feb 2014

Prof. Rafael Salatini – TRANSCEND Media Service

São Paulo: Palas Athena, 2006 -Tradução Antonio Carlos Silva Rosa

Um dos autores mais importantes da teoria das relações internacionais no pós-guerra, Johan Galtung, dedicou toda sua profícua carreira intelectual ao estudo da paz e da solução pacífica de conflitos, que divulgou sob o epíteto de peace research, iniciados nos anos 1960, especialmente no Journal of Peace Research, que fundou. Pouco estudado no Brasil, onde sua extensa obra resta ainda pouco traduzida (salvo até pouco tempo pelo artigo “Violência, paz e investigação sobre a paz”, de 1969, publicado numa obra coletiva portuguesa no início dos anos 1990) e pouco comentada, a publicação nos últimos anos de algumas obras bastante representativas de seus estudos, como “Direitos humanos – uma nova perspectiva” (publicada pela editora portuguesa Instituto Piaget em 1998), “O Caminho e a meta – Gandhi hoje” (publicada pela editora brasileira Palas Athena em 2003) e “Cobertura de conflitos – uma introdução ao jornalismo para a paz” (com Jacke Lynch e Annabel McGoldrick, publicada pela editora mexicana TUP em 2010) servem para mudar positivamente esse “estado da arte”. Publicada recentemente no Brasil, “Transcender e transformar – uma introdução ao trabalho de conflitos” oferece uma ampla e bem-vinda apresentação do método utilizado pela organização TRANSCEND International (www.transcend.org), dirigida pelo autor, para a solução pacífica de conflitos, baseado na superação dos princípios da luta e do adiamento pela negociação e o diálogo (em termos processuais) e na superação dos princípios da vitória e da retirada pelo acordo e a transcendência (em termos dos resultados).

A obra apresenta uma classificação geral dos conflitos, divididos em quatro níveis designados como microconflitos (nas pessoas e entre elas), mesoconflitos (dentro das sociedades), macroconflitos (entre Estados e nações) e megaconflitos (entre regiões e civilizações). O primeiro capítulo é dedicado aos microconflitos (nível 1), citando diversos exemplos retirados da vida interindividual de diversas nações e suas possibilidades de solução prática pelo método galtungiano. “Acabamos de considerar – afirma o autor – alguns conflitos ‘nas pessoas e entre elas’. Se olharmos atentamente, veremos que eles estão todos incluídos nestes dois tipos de conflitos. As partes têm seus objetivos. Todavia, vivem em tão grande proximidade, que também se dão conta do objetivo do outro. Mesmo que estejam perseguindo seus objetivos sem olhar para os lados, não estão indiferentes aos objetivos do outro” (p.61). Ao final do capítulo, o Galtung procede a uma rápida discussão teórica sobre o conceito de transcendência, recorrendo a Freud (e rejeitando Nietzsche).

O segundo capítulo discute os mesoconflitos (nível 2), afirmando-se: “avançamos agora do micro para o meso, do pessoal para o social, da psicologia para a sociologia, a economia, a filosofia social, a política” (p.65). Galtung discute as possíveis soluções práticas para oito contradições sociais típicas das sociedades modernas – raça, classe, economia, política, segurança, escola, saúde e gênero –, concluindo o capítulo com uma descrição das opções práticas que permitiram a transcendência dos diversos e complexos conflitos na Suíça (assumida como um modelo geral para toda a obra) e, por fim, uma discussão teórica do conceito de transcendência no pensamento de Marx.

O terceiro capítulo aborda os macroconflitos (nível 3), que comporta os conflitos geopolíticos. “Os Estados – afirma Galtung – são países geograficamente definidos. As nações são grupos definidos culturalmente (histórica, linguística e religiosamente), com uma ligação a algum espaço geográfico. Se houver mais de uma nação vinculada ao mesmo pedaço de terra, então estamos perante um conflito sobre quem vai governar, e podemos esperar violência, pelo menos verbal” (p.99). São apresentadas, em seguida, propostas oferecidas pela organização TRANSCEND International para a solução pacífica de dez conflitos internacionais: o contencioso Equador/Peru, a questão da Groelândia do Leste (Noruega/Dinamarca), a soberania do Havaí, os conflitos na Colômbia, os conflitos do Ruanda/Grandes Lagos, a independência funcional do Ulster, a independência funcional do Euskadi, o conflito Israel/Palestina (incluindo os acordos de Oslo) e o tema da reconciliação pós-apartheid na África do Sul (com destaque para este último conflito).

O quarto capítulo analisa os chamados megaconflitos (nível 4), que incluem “as relações entre as regiões – com Estados como membros – e entre civilizações – com nações como membros –, e as relações entre ambas”. Segundo Galtung, “regiões consistem, regra geral, de países contíguos nos espaço […] [e] civilizações abrangem, normalmente, nações que são contíguas em conteúdo”, ressalvando que “Estados e nações podem ser mais ou menos membros de regiões e civilizações, que são hoje peças componentes de um mundo cada vez mais globalizado” (p.153-154). Galtung analisa, então, as possibilidades de solução pacífica de outros dez conflitos internacionais (agora em nível mega): a despolarização na Guerra Fria, o papel da ONU na Guerra Fria, o conflito Norte-Sul, a globalização (citando o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2003), o desenvolvimento sustentável, o conflito cristianismo/islamismo e o conflito EUA-Ocidente/demais regiões (citando o fatídico ataque terrorista de 11 de setembro de 2001). Ao final, são mencionados dois instrumentos importantes para a solução pacífica de conflitos: o diálogo entre as partes e a doutrina nãoviolência gandhiana. Seria preciso mencionar a importância da personalidade e da filosofia gandhiana como um todo para o pensamento de Galtung (que lhe dedicou diversos outros escritos autônomos), como se pode ver neste trecho, que celebra o ecumenismo gandhiano: “A unidade da vida, a unidade da humanidade, tem de encontrar o seu par na unidade da mensagem, para que os seres humanos, através de todas as divisões de conflito, possam se ver um ao outro como sagrados e dignos, canalizando a luta para onde ela deve ser direcionada” (p.188).

A obra apresenta, ao final, três capítulos conceituais sobre o método TRANSCEND: o quinto capítulo, que discute os conflitos em nível profundo cultural, comportamental e estruturalmente; o sexto capítulo, que discute os conceitos de criatividade, diálogo e negociação; e o último capítulo, que apresenta uma visão geral do método da transcendência e transformação de conflitos, que inclui os seguintes elementos sistemáticos (apresentados em outra parte da obra): a) os estudos de conflitos, que “habilitam-nos a defrontar ou abordar conflitos com empatia, não-violência e criatividade”, b) os estudos de paz, que “habilitam-nos a prevenir a violência por intermédio de igualdade e equidade” e c) os estudos de reconciliação, que “habilitam-nos a prevenir violência futura por intermédio de cura e fechamento do ciclo, após a violência do passado” (p.151). Uma síntese da obra pode ser entrevista neste trecho: “A tarefa do trabalhador de conflito não é interromper a dialética, exigindo das partes que abandonem suas posições, a menos que estas sejam claramente ilegítimas. Sua função é antes evitar que atinjam uma acomodação insípida, sem criatividade, que não acrescente algo de novo, que não renove a realidade. O trabalhador de conflitos presta atenção à dialética para, juntamente com as partes, encontrar uma transcendência positiva que sirva de ponte entre os objetivos, ou uma transcendência negativa que rejeite ambas” (p.182).

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Publicado no periódico Pensamento Plural, v. 07, n. 13, UFPel, RS, jul/dez 2013, pp. 109-112.  [Disponível em: http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pensamentoplural/article/view/3235] (ISSN: 2238-4642).

Rafael Salatini – Doutor em Ciência Política (FFLCH-USP) e professor de Ciência Política (Unesp-Marília). rafaelsalatini@marilia.unesp.br

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