(Português) Harvey: A violência nas ruas e o fim do capital

ORIGINAL LANGUAGES, 4 Aug 2014

David Harvey – TRANSCEND Media Service

O artigo a seguir é um trecho editado do mais recente livro de David Harvey, 17 contradições e o fim do capitalismo, em que o geógrafo britânico identifica e disseca didaticamente todas as contradições do capital segundo a análise feita por Marx – para ele, seriam exatamente dezessete. Neste trecho, Harvey procura tecer os fios de um novo humanismo revolucionário, entre a contraditória proliferação de ONGs e as explosões violentas nas ruas do mundo.

David Harvey

David Harvey

Em poucas palavras, o problema com a tradição humanista é que ela não internaliza uma boa compreensão de suas próprias e inescapáveis contradições internas – algo mais claramente evidenciado no caso da contradição entre liberdade e dominação. O resultado é o que Frantz Fanon caracterizou como “humanitarismo insípido”. Há evidências suficientes disso em seu revival recente. A tradição burguesa e liberal de humanismo secular acaba formando uma base ética piegas para uma moralização ineficaz sobre o triste estado do mundo e para a construção de campanhas, igualmente ineficazes, contra os males da pobreza crônica e da degradação ambiental.

É provavelmente por essa razão que o filósofo francês Louis Althusser lançou sua ferrenha e influente campanha na década de 1960 para extirpar do marxismo todo o falatório sobre socialismo humanista e alienação. O humanismo do jovem Marx, conforme expresso nosManuscritos econômico-filosóficos de 1844, insistia Althusser, estaria separado do Marx científico d’O capital por uma “ruptura epistemológica” – algo que estaríamos ignorando a prejuízo próprio. O humanismo marxista, ele escrevia, é pura ideologia, teoricamente vazio e politicamente enganoso – se não mesmo perigoso. A devoção de um dedicado marxista como Antonio Gramsci ao “humanismo absoluto da história humana” era, na visão de Althusser, completamente deslocada.

O enorme aumento e a natureza das atividades compactualizantes das ONGs humanistas ao longo das últimas décadas parece sustentar as críticas de Althusser. O crescimento do complexo “caridoso-industrial” reflete principalmente a necessidade de aumentar a “lavagem de consciência” para uma oligarquia mundial que vem dobrando sua riqueza e poder de anos em anos em meio à estagnação econômica. Seu trabalho tem feito muito pouco ou quase nada para lidar com a degradação e despossessão humana, ou com a degradação ambiental que se alastra. Isto se dá, estruturalmente, porque as organizações anti-pobreza precisam operar sem jamais intervir na continuada acumulação de riqueza, de onde tiram seu próprio sustento. Se todos que trabalhassem em uma organização anti-pobreza passassem, da noite para o dia, a promover políticas anti-riqueza, logo nos veríamos vivendo em um mundo bem diferente. Pouquíssimos doadores caridosos – nem mesmo Peter Buffett, eu suspeito – iriam financiar uma coisa dessas. E as ONGs, que agora estão no centro do problema, não iriam de todo modo querer isso (apesar de haver muitos indivíduos no interior do mundo das ONGs que estariam dispostos a tal, mas que simplesmente não podem).

Fanon, é claro, choca muitos humanistas liberais com seu endosso de uma violência necessária e sua rejeição da via conciliatória. Como, ele se pergunta, a não-violência é possível numa situação estruturada pela violência sistemática exercida pelos colonizadores? Que sentido tem uma população faminta declarar greve de fome? Por que, como Herbert Marcuse se perguntava, deveríamos ser persuadidos pelas virtudes de tolerância para com o intolerável? Em um mundo dividido, onde o poder colonial define os colonizados como subumanos e malvados por natureza, a conciliação é impossível.

Não levanto a questão da violência aqui, tampouco o fez o próprio Fanon, porque sou ou ele era favorável a ela. Ele a sublinhou porque a lógica das situações humanas tão frequentemente se deteriora a ponto de não restar nenhuma outra opção. Até Ghandi reconheceu isso.

Mas a ordem social do capital é essencialmente muito diferente de suas manifestações coloniais? Aquela ordem certamente buscou se distanciar, em casa, do cálculo cruel da violência colonial (algo como um mal necessário a ser aplicado sobre os outros, incivilizados, ‘de lá’ para seu próprio bem). Ela teve de disfarçar, em casa, a inumanidade descarada que demonstrava no exterior. ‘Do lado de lá’ as coisas poderiam ser deslocada para fora de nosso campo de visão e de audição. Só agora, por exemplo, a violência cruel da supressão britânica do movimento Mau Mau no Quênia na década de 1960 está sendo completamente reconhecida.

Quando o capital passa perto de tal inumanidade em casa ele tipicamente elicia uma resposta semelhante àquela dos colonizados. Na medida em que ele abraçou a violência racial em casa, como o fez nos Estados Unidos, produziu movimentos como os Panteras Negras e a Nação de Islã com seus lideres como Malcom X e, em seus últimos dias, Martin Luther King, que viu a ligação entre raça e classe e sofreu as consequências decorrentes. Mas o capital aprendeu uma lição. O quanto mais raça e classe se entrelaçam, mais rápido o pavio revolucionário queima.

Mas o que Marx deixa tão claro em O capital é a violência diária constituída na dominação do capital sobre o trabalho no mercado e no ato de produção, bem como no terreno da vida diária. Quão fácil não é pegar descrições das condições de trabalho contemporâneas, por exemplo, nas fábricas de eletrônicos de Shenzesn, nas fábricas de roupas em Bangladesh ou as confecções clandestinas de Los Angeles, e encaixá-las, sem prejuízo, no clássico capítulo de Marx sobre a jornada de trabalho n’O capital? Quão surpreendentemente fácil não é pegar as condições de vida das classes trabalhadoras, dos marginalizados e desempregados em Lisboa, São Paulo e Jacarta, e as justaporem à clássica descrição de Engels em 1844 em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra?

O privilégio e o poder oligárquicos da classe capitalista estão levando o mundo em uma direção semelhante em quase toda a parte. O poder político – sustentado por uma vigilância, um policiamento e uma violência militarizada intensificantes – está sendo usado para atacar o bem-estar de populações inteiras tidas como dispensáveis. Diariamente testemunhamos a desumanização sistemática de povos descartáveis. Implacável, o poder oligárquico está agora sendo exercido por uma democracia totalitária destinada a interromper, fragmentar e suprimir qualquer movimento político coerente organizado contra a riqueza (como o occupy, por exemplo). A arrogância e o desprezo com que os afluentes agora veem os menos abastados – mesmo quando (particularmente quando) em disputa uns com os outros por trás de portas fechadas para mostrar quem pode ser o mais caridoso de todos – são fatos notáveis de nossa atual condição.

A “lacuna de empatia” entre a oligarquia e o resto é imensa, e não para de crescer. Os oligarcas confundem renda superior com valor humano superior e consideram seu sucesso econômico como evidência de seu conhecimento superior do mundo (ao invés de produto de seu controle superior sobre as artimanhas da contabilidade e sobre determinadas ferramentas legais). Eles não sabem ouvir o sofrimento do mundo porque não podem e não vão deliberadamente confrontar seu papel na construção dessa situação. Eles não vêem e não podem ver suas próprias contradições. Os bilionários irmãos Koch doam caridosamente a uma universidade como a MIT ao ponto de construírem uma linda creche para o corpo docente merecedor de lá enquanto simultaneamente esbanjando incontáveis milhões de dólares em apoio financeiro a um movimento político (liderado pela facção do Tea Party) no congresso estadunidense que corta vale-alimentação e nega bem-estar, suplementos nutricionais e creches para milhões vivendo na ou perto da miséria absoluta.

É num clima político como este que as erupções violentas e imprevisíveis que estão ocorrendo por todo o mundo episodicamente (da Turquia e do Egito ao Brasil e à Suécia só em 2013) parecem mais e mais como tremores prévios de um terremoto vindouro que fará das lutas revolucionárias pós-coloniais da década de 1960 parecerem brincadeira de criança. Se há um fim do capital, então isto é certamente de onde ele virá e suas consequências imediatas dificilmente se provarão felizes para qualquer um. Isso é o que Fanon tão claramente nos ensina.

A única esperança é que a massa da humanidade verá o perigo antes que a podridão vá longe demais e o dano humano e ambiental se torne grande demais para consertar. Diante do que o Papa Francisco com razão chama de “globalização da indiferença”, é imperativo que as massas globais, como Fanon bem disse, “resolvam despertar, sacudir o cérebro e cessar de tomar parte no jogo irresponsável da bela adormecida no bosque.” (Os condenados da terra, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p.85). Se a bela adormecida despertar a tempo, então talvez possamos esperar um final mais com cara de conto de fadas. O “humanismo absoluto da história humana”, escreveu Gramsci, “não visa a resolução pacifica das contradições existentes na história e na sociedade mas, ao contrário, é a própria teoria dessas contradições”. A esperança está latente nelas, disse Bertolt Brecht. Existem suficientes – dezessete – cativantes contradições no interior no domínio do capital para semear o solo da esperança.

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David Harvey é um dos marxistas mais influentes da atualidade, reconhecido internacionalmente por seu trabalho de vanguarda na análise geográfica das dinâmicas do capital. É professor de antropologia da pós-graduação da Universidade da Cidade de Nova York (The City University of New York – Cuny) na qual leciona desde 2001. Foi também professor de geografia nas universidades Johns Hopkins e Oxford. Seu livro Condição pós-moderna (Loyola, 1992) foi apontado pelo Independent como um dos 50 trabalhos mais importantes de não ficção publicados desde a Segunda Guerra Mundial. Seus livros mais recentes são O enigma do capital, Para entender O capital, livro I e O novo imperialismo.

Tradução de Artur Renzo para o Blog da Boitempo.

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