(Português) Onde Augusto Boal investiga a ‘banalidade do mal’
ORIGINAL LANGUAGES, 21 Sep 2015
Ovidio Poli Junior – Outras Palavras
Em dois livros quase desconhecidos, dramaturgo narra sua prisão pela ditadura. Não faz panfleto: quer enxergar engrenagens que transformam tortura em ritual quase burocrático. Leitura difícil porque gráfica, do dia-a-dia dos prisioneiros e das torturas físicas e psicológicas. Documentos históricos.
Os dias de prisão vivenciados por Augusto Boal são objeto específico de dois de seus livros, ambos concebidos e iniciados no cárcere e escritos durante o exílio: a peça teatral Torquemada (1972) e o romance Milagre no Brasil (1979). Apesar de o romance ter sido escrito posteriormente, é nele que vamos encontrar indicações mais precisas dos elementos episódicos e temáticos que foram transpostos e trabalhados ficcionalmente na obra dramática. Quanto a sua autobiografia, servimo-nos dela para demarcar as mudanças de tom e enfoque operadas pelo autor ao abordar retrospectivamente a experiência carcerária a partir de uma perspectiva temporal mais dilatada que a das obras anteriores.
Augusto Boal foi sequestrado e preso em fevereiro de 1971, a caminho de casa logo após sair do Teatro de Arena, sendo registrado nas fichas de identificação do DOPS sob nome falso, para dificultar sua localização por parte de quem fosse procurá-lo. O motivo alegado de sua prisão foi o fato de seu nome ter “aparecido num interrogatório”. Torturado com choques elétricos no “pau-de-arara” (verdadeira instituição em nossas latitudes, desde os tempos da escravidão), o dramaturgo teve sua casa invadida quando estava na prisão, em cela individual, desfrutando da companhia de um singelo camundongo que descreve inicialmente com asco, depois com inusitado lirismo em suas memórias.i
Transferido para o Presídio Tiradentes [em São Paulo], passa dois meses em uma cela coletiva e ali rabisca os desenhos e as anotações a partir das quais escreveria posteriormente Milagre no Brasil e Torquemada.ii
A peça é um protesto contundente contra a ditadura militar brasileira e resgata os episódios vividos no cárcere rompendo com a linearidade e a perspectiva temporal dos fatos narrados no romance. Utilizando-se de um recurso ficcional carregado de simbologia – a irrupção, como protagonista das atrocidades, do padre Tomás de Torquemada, primeiro inquisidor-geral do Santo Ofício, introduzido na Espanha no final do século XV –, Boal trabalha os níveis temporais da narrativa sincronicamente, associando a inquisição católica medieval ao terror instaurado pela ditadura militar no Brasil. O clima de irrealidade da peça e o tratamento alegórico acabam conferindo à obra um caráter perene, diluindo seu tom inicialmente superficial e panfletário e construindo cenas de intensa dramaticidade e inquestionável valor estético, um libelo contra o fenômeno da intolerância que não fica circunscrito a uma experiência histórica específica.
Já o romance – que passaremos a comentar – é construído como um minucioso relatório no qual o narrador reconstitui sua trajetória carcerária com a intenção manifesta de a um só tempo oferecer um testemunho e fazer da obra instrumento de denúncia.
A narrativa começa em tom sinistro, numa noite chuvosa na qual o dramaturgo é conduzido até as dependências do DOPS, departamento de polícia política que o autor classifica como “uma espécie de escritório policial clandestino”. Em poucas páginas, o ambiente prisional é descrito: a cela individual que ocupa (F-1: primeira cela do fundão), o soldado que o vigia, os presos transformados em ajudantes (um dos quais, alcunhado “Catarina”) e os funcionários regulares do calabouço (como o inspetor Luís, “uma espécie de fiscal que anotava tudo o que ocorria”). Um dos homens que o prenderam – identificado como um dos que tentaram impedir a estréia da Primeira Feira Paulista de Opinião – é descrito em suas características psicológicas:
“O que o Baixinho mais gostava era de ver rostos assustados: gostava de provocar o medo. Seu sadismo consistia de ameaçar, mais do que de realizar a violência, efetivamente. Gostava de ver o medo e não a dor na cara de suas vítimas. (…) Ele era um dos membros do Esquadrão da Morte e confessava que o que ele mais gostava de fazer eram os preparativos para matar um homem, e não a morte em si mesma, o assassinato. Quando iam levar um prisioneiro para matá-lo na rua, ou num terreno baldio, sentia um enorme prazer em tudo: tirar o prisioneiro da cela, atar suas mãos com arame (…), metê-lo dentro do carro, conversar com os outros policiais sobre o melhor lugar para a execução, diante do preso que ia ser executado, descer no lugar combinado, fazer o preso correr e finalmente (e isso era o que menos lhe importava) disparar e matá-lo. Quando lhe dava o último tiro de misericórdia (…) já não sentia o menor prazer. Se o fazia, era simplesmente porque acreditava ser esse o seu dever profissional: cumpria uma rotina, como um empregado bancário”.iii
Na cela ao lado, sem poder vê-la, o autor percebe a presença de uma amiga que já passara por sucessivas prisões e lhe faz uma recomendação, cujo significado ele compreenderia mais tarde: “Aqui é preciso ser mais brechtiano do que stanislawskiano… Aqui a gente não pode só sentir, tem que tentar compreender…”. O quadro de terror é imediatamente instaurado na narrativa quando ela é retirada da cela e levada para o quartel da Rua Tutóia:
“O quartel a que [Maria Helena] se referia era um dos lugares mais lúgubres e terríveis de todo Brasil. (…) Ali três equipes de oficiais se revezavam torturando dia e noite, sem qualquer interrupção. Os mais ferozes torturadores, os mais animalizados, ali praticavam. E como era pequena a distância entre a sala de tortura e as celas dos presos, estes eram forçados a escutar dia e noite, sem descanso, os gritos de dor dos companheiros. Às vezes, a pior tortura é ver um torturado. E ali se podia ver – e se era forçado a ver – e ouvir. Vinte e quatro horas por dia”.iv
Ao narrar a primeira tarde passada no cárcere, Augusto Boal não deixa de observar um aspecto esmiuçado de forma recorrente no livro, qual seja, a maneira pela qual as atrocidades ali cometidas estavam inscritas numa fria burocracia, num ambiente povoado de seres estranhos – seja pela circunstância inusitada de desenvolverem atividades corriqueiras dentro daquele local sinistro (“um homem que vendia café com biscoitos e sanduíches), seja pelo fato de cumprirem com zelosa naturalidade os ditames de uma verdadeira administração da barbárie, num cálculo racional que chegava às raias da ciência:
“O policial assinou um ‘recibo’ por mim, isto é, eu era a coisa a que o recibo se referia”.
“Às duas da tarde, a atmosfera começou a ficar tensa. Todos começaram a se comportar de uma maneira diferente, todos mais nervosos, o silêncio mais duro, nenhum sorriso em nenhum rosto. Era porque às duas da tarde começavam os interrogatórios, as torturas. Como se fosse um escritório comercial. Burocraticamente. Das duas às sete”.v
O autor é atento em observar o poder absoluto de que eram investidos os seus algozes, na medida em que criavam uma rígida e disciplinada dinâmica de terror que, não obstante – terror dos terrores –, podia ser subvertida a qualquer momento. É o caso do ocorrido com um dos presos políticos, que acreditava que seria solto e já se preparava para deixar o aljube:
“Ouvi ruídos no corredor: traziam um homem deitado em uma maca. Quando se aproximaram, pude ver um rosto duramente golpeado. Era Hélvio que voltava à sua cela. Tinha sido torturado com toda a crueldade: hematomas e sangue. Depois me contaram que essa era uma das piores formas de torturar: consistia em dizer ao prisioneiro que ele ia ser posto em liberdade e lhe davam mesmo o direito de tomar banho, fazer a barba, arrumar suas coisas. Às vezes, até lhe devolviam os documentos e objetos pessoais. E, quando já estava no elevador, em vez de ir para a rua era levado diretamente à sala de torturas para novas sessões. Inconsciente, voltava à sua cela, onde tinha comemorado sua liberdade com seus amigos. Isso produzia um impacto terrível sobre a vítima principal e, colateralmente, sobre todos os seus companheiros. Aliava-se a tortura física à psicológica”.vi
O delegado do DOPS – Sérgio Paranhos Fleury – é descrito como “um personagem sinistro”, detentor de um poder pânico, capaz de disseminar um pavor repentino, às vezes sem fundamento, e de provocar uma reação desordenada (individual ou coletiva) de rápida propagação entre seus subordinados: “o terror que os tiras sentiam do seu chefe se convertia em crueldade diante de suas vítimas”.vii
Ao narrar o seu retorno à cela após o primeiro interrogatório com o sinistro comissário – quando os policiais o conduzem ao elevador como se fossem subir à sala de torturas, mas afinal acabam apertando o botão do térreo –, Augusto Boal mostra em poucas linhas como o espírito do preso vai sendo alquebrado pela tortura psicológica, de tal modo que acaba até mesmo se adaptando às condições subumanas do cárcere:
“Olhei a cama imunda, o cobertor roto e sujo que me tinham trazido como muito favor, a privada ninho de ratos, a pia sem água – olhei toda essa sujeira e sorri. Eu me sentia como se tivesse voltado para casa. A cela já era para mim um lugar familiar. Me deitei e dormi. Profundamente”.viii
Na narrativa são recriadas algumas situações insólitas, especialmente uma, caracterizada como sendo “de extremo ridículo e insuperável boçalidade”, quando, estando o autor no “pau-de-arara”, quase no limite de perder a consciência, um dos torturadores o acusa de difamar a imagem do Brasil no exterior: “- Mas difamo como?”, pergunta. “– Você difama porque, quando você vai ao Exterior, lá fora você diz que aqui no Brasil existe tortura!” (vendo a cena de cabeça para baixo, ali pendurado, o dramaturgo não suportou o ridículo da situação e não conseguiu conter o riso).
O romance pode ser lido não apenas como um panfleto, ou seja, como um texto de denúncia, protesto e indignação, mas também como um ensaio sobre a psicologia do torturador. Há mesmo um capítulo do livro (“Um jantar macabro”) no qual os presos insistem em narrar uma série de torturas que se praticavam no Brasil, apesar da insistência de um deles, que pedia que o rosário de crueldades cessasse – pois, como anota o autor, “o assunto fascinava a todos nós, hipnoticamente”.
É importante observar que, nas entrelinhas, mais do que a “soberana estupidez”, o narrador tenta compreender o incompreensível – como, por exemplo, a aparente naturalidade dos seus algozes, que queriam “apressar o serviço” para poderem ir para casa jantar com a mulher e os filhos. Interessa-lhe não apenas apontar a natureza e a inclinação facínora, perversa e sádica de cada um daqueles personagens – de resto, como o próprio autor afirma, integrantes de um sistema muito mais amplo –, mas sobretudo penetrar na alma ou no interior da consciência daqueles homens aparentemente desprovidos desses atributos e do próprio senso de humanidade:
“– É verdade que a gente está te torturando sim, mas com todo o respeito.”
“[O médico da prisão] entrou na cela de Hélvio e seu Luís [o inspetor] foi atrás. (…) Seu Luís perguntou se não tinham exagerado um pouco na tortura.
– Não, não… – respondeu o médico. – Acontece que torturaram ele de uma forma errada. Não fizeram um trabalho profissional. (…) Penduraram ele de uma perna só, a direita. (…) O resultado foi esse, é lógico…
Seu Luís perguntou então muito naturalmente quantos dias teriam que esperar antes de poderem torturar de novo. Friamente, o médico respondeu:
– Não precisa repouso nenhum, não. Se quiserem fazer outra sessão hoje mesmo à tarde, como não? Só que não podem encostar na perna direita: mas podem pendurar o rapaz pela esquerda…”ix
Por vezes, é como se o autor considerasse que os personagens que integram a verticalidade da paisagem carcerária fizessem parte de uma engrenagem autônoma: a certa altura, observa que seus torturadores não sabiam exatamente que perguntas deveriam dirigir-lhe, olhando um roteiro com algumas questões previamente estabelecidas.
A descrição do universo carcerário assume outra inflexão quando o autor passa a narrar os dias que passou após sua transferência para a cela 3 do Presídio Tiradentesx. A perspectiva subjetiva, terrificada pelo ambiente do DOPS, vai aos poucos cedendo lugar à descrição dos companheiros de cela e dos demais personagens que compunham aquele submundo carcerário: o médico (também recluso) que atendia aos presos políticos e aos presos comuns (chamados corrós), o “queijeiro” Zeca (que fazia queijo na cela para oferecê-lo aos presos comuns, como complemento de sua alimentação), Scarface (ladrão e contrabandista, a princípio rejeitado pelo grupo devido à sua origem), Buda (o bóia-fria) e o inesquecível Polyana xi.
A precária organização do cubículo e o espaço físico da cela coletiva são esquadrinhados:
“Minha primeira impressão foi estranha: olhei e não vi onde estava a cela. O que vi me pareceu um depósito. Muitas camas duplas, umas em cima das outras, roupa pendurada por toda parte, caixas de alimentos, charque e linguiças penduradas ao lado das roupas, bananas. Uma mistura infernal. As paredes estavam todas recobertas de cartazes, especialmente de mulheres nuas. Jane Fonda era a mais conspícua. Entre as camas, algumas estantes cheias de livros e remédios. Dois ou três violões, uma mesa grande no centro e mais outras duas, várias cadeiras e uma poltrona. Cortina na maioria das camas: umas estavam abertas e outras fechadas, como se fossem caixas. A isto os presos chamavam mocós.”
“(…) O mocó era o reduto íntimo e último do preso, que só ali podia ficar sozinho. Dentro do mocó, os presos colocavam também pequenas estantes privadas, com suas coisas pessoais, fotografias, relógio, cadernos e até sua decoração pessoal. O preso podia entrar no seu mocó, fechar as cortinas e se isolar do mundo. Esse era o seu ninho. A volta ao útero”.xii
O autor descreve a teia de solidariedade existente entre os presos, como a confecção de bijuterias, colares e bolsas – de que também nos fala Frei Betto em suas cartas – que eram vendidos para fora e cuja renda era destinada a amenizar as dificuldades financeiras das famílias de outros presos. Havia mesmo uma bebida que era fabricada com as frutas trazidas pelos parentes e destilada clandestinamente no banheiro de algumas celas.
Outros “personagens” – isto é, homens forjados em situações-limite que o escritor recria literariamente dando ensejo inclusive a situações cômicas e irônicas, coisa que não ocorre em Torquemada, obra marcada por um clima permanentemente dramático e sombrio – nos são apresentados, como o japonês Hirata, farmacêutico que com seu sotaque peculiar depositava uma confiança exacerbada na Rádio Nacional, emissora sob intervenção cujas informações eram contestadas por Copy Desk, dono de grande habilidade e prodigiosa memória com cifras estatísticas:
“Copy Desk falava com paixão. Os números em sua boca não eram simples abstrações. Quando dizia que no Nordeste existia um déficit de 2.300.000, dava a impressão de que conhecia pessoalmente a cada uma das famílias que não tinham essas 2.300.000 casas, e que compartia suas dores e suas incomodidades”. xiii
O carcereiro, por sua vez, é retratado como sendo possuído por um compulsivo apetite:
“Não perdoava nada. Quando por casualidade chegava tarde ao jantar [na cela dos presos], ele se sentava ao lado da lata do lixo e antes que as pessoas esvaziassem os restos dos seus pratos ele sempre aproveitava alguma coisinha: um osso não completamente chupado, uma folha de alface, uns fios de espaguete”.xiv
Há trechos do livro que parecem tecidos com elementos eminentemente ficcionais. A partir do relato do carcereiro, Boal reconstitui com humor o diálogo de um dos presos políticos com o diretor do presídio. O inglês, que ocupava a “Cela dos Lordes”, exigia em tom formal os seus direitos legais, entre os quais o de entrevistar-se privadamente com sua esposa:
“– Como advogado, o senhor deve saber que existe um estatuto para os presos, especialmente para os presos políticos. Segundo esse estatuto nós temos muitos direitos, muitas regalias. Eu lamento ter que dizer, senhor diretor, que essas regalias e esses direitos não têm sido respeitados, pelo menos no que me diz respeito.
– Vocês tomam sol duas vezes por semana; nós permitimos que joguem futebol meia hora depois do sol; têm livros nas celas; algumas celas têm até aparelhos de televisão. Suas famílias são autorizadas a trazer comida que nós não interceptamos. Que mais querem? Que mais querem?
– Esses são direitos básicos, doutor. Eu me refiro a outros…
– O senhor quer voltar aos tempos passados??? Quando esta penitenciária era um prostíbulo, um cabaré, uma verdadeira Sodoma e Gomorra??? (…) Escute de uma vez por todas, mister. Aqui, enquanto eu viva, vai haver respeito na marra. (…) O senhor é um abusado. Como pode ter pensado nisso? Eu não li a sua ficha, mas conheço o senhor muito bem. Primeiro, a sua mulher começou a trazer chá inglês pra cá. Eu percebi muito bem, porque eu fiscalizo tudo que entra nas celas, não vou deixar passar um revólver ou um punhal. Chá inglês!!! Veja só. No pavilhão dos corrós se passa fome, fome de verdade. Os corrós disputam na porrada a pouca comida que existe. E o senhor com seu chá inglês… Bom, como se não bastasse, sua senhora esposa começou a trazer biscoitos doces. Caramba! Nem que fosse o Presidente da República! Mas eu fiquei calado. Estou a favor da propriedade privada e cada um pode dispor dos seus bens como bem entender. Depois, começaram os pratos salgados: patê francês, presunto de não sei onde e até frango com farofa. Frango com farofa, minha Nossa Senhora!!! Mas em nome da propriedade privada eu fui aguentando tudo, tudo o que se refere ao estômago! Mas agora tenho que dizer chega!!! O estômago sim, eu respeito! Mas a abstinência é parte da condenação!!!”xv
Apesar de a narrativa às vezes ceder lugar ao humor e à ironia, o que acaba prevalecendo em Milagre no Brasil é um clima absurdo e surreal. “No universo contingente da prisão, território do abuso e da subversão moral, a realidade transfigura-se em irrealidade”, como bem observou Maria José de Queiroz. Isso se torna mais evidente quando o autor nos conta, por exemplo, que os dias de visita no presídio Tiradentes eram também dias de butim (uma vez que os guardas se apropriavam dos despojos dos presos e o retorno às celas era marcado pelo paciente inventário das coisas saqueadas), ou quando reconstitui o patético depoimento de um dos presos na auditoria militar acusando o tribunal de exceção de abrigar entre seus membros os seus próprios torturadores, sem deixar de registrar ainda a impotência dos jornalistas diante do episódio kafkiano:
“Os jornalistas presentes foram avisados de que não poderiam publicar nada, e por isso nem se deram ao trabalho de escrever o que estavam vendo”.xvi
Detentor de prodigiosa memória e de escrupuloso senso de observação, Augusto Boal é atento aos detalhes que vivenciou ou que lhe foram narrados durante sua prisão e com eles compõe, a exemplo do que fez Graciliano Ramos em Memórias do cárcere, um cenário miserável e dantesco: o carcereiro faminto que come a metade do sanduíche que o dramaturgo deixara na cela antes de subir à sala de torturas, um preso dando choques elétricos em si mesmo para “manter a forma”, o industrial que além de subvencionar o aparelho repressivo mantido pelo regime gostava de assistir às torturas pelas quais pagava, o estupro de um preso comum no pavilhão dos correcionais.
Entremeando diálogos e situações, o autor vai fundindo a observação em torno dos colegas com a descrição do ambiente penitenciário, criando um clima que beira o absurdo. Parece-nos, entretanto, que interessa ao narrador não somente a denúncia, mas também anotar a profusão de coisas díspares que habita a realidade carcerária, o modo como se entrecruzam as expectativas individuais dos detentos (“quanto tempo duraria ainda o mal das grades”?) e a concepção de mundo daqueles homens sinistros que promoveram sua reclusão ou eram de uma maneira ou de outra responsáveis por sua tutela e sujeição.
Ao narrar, por exemplo, a visita de um integrante da organização Opus Dei à cela, Augusto Boal procura captar os postulados da estranha lógica que habitava aquela alma peregrina – alma confusa que a um só tempo condenava a tortura por questões de foro íntimo mas justificava sua aplicação em “situações extremas”, afirmando que no Brasil a tortura desempenharia um “papel progressista” e desenvolvendo a tese de que “diante de cada problema que o homem enfrenta deve ser considerada humana a solução mais eficaz”.
Em tom ficcional, o romancista situa o contra-senso ético e político que a argumentação comportava, mostrando que a banalização do mal é construída a partir de um discurso previamente elaborado (no caso, de cartilha), discurso dogmático que o nosso narrador certamente rejeita (com um travo de ironia), mas cujos termos quase tenta compreender, ou seja, incluir no universo de uma formulação geral:
“– A tortura está muito desacreditada hoje em dia. É preciso restabelecer a sua dignidade. Dizem por aí que o torturado é capaz de confessar até o que não fez. É verdade. Mas também é verdade que o torturador consciente não aceita a confissão sem provas. A confissão é o começo do processo, não é o fim. Torturar significa vencer certas resistências morais, ideológicas, psicológicas, que põem o paciente em um estado de espírito hostil e contrário ao do interrogador. Vencidas essas resistências muito compreensíveis, o paciente estará pronto a mostrar sua boa vontade, sua cooperação”.xvii
Diante da aridez de tal paisagem, o único contraponto que encontramos é uma semente que vemos nascer dos próprios sulcos daquela terra agredida que o romance expõe e denuncia. O sentimento de irmandade entre pessoas que pertenciam a organizações políticas distintas e divergentes e que foram obrigadas a um longo período de convivência forçada é apontado por todos os escritores que consultamos (exceção feita a Graciliano Ramos), inclusive autores identificados com o regime.xviii
Augusto Boal o afirma com todas as letras: “Nós todos sentíamos que éramos irmãos. Foi o único favor que nos fez a ditadura”. Mais que isso, aponta a estranha solidariedade que viceja até mesmo entre carcereiros e presos – em última instância, ainda que por motivos distintos, também obrigados a uma convivência forçada.xix
Em Milagre no Brasil, são inúmeras as menções a pequenos atos de solidariedade, troca de informações, condescendência diante de alguma irregularidade e mesmo observações canhestras atravessadas por um certo cinismo como a que transcrevemos a seguir:
“– Eu avisei, eu avisei… [diz o carcereiro ao prisioneiro que havia insultado um dos guardas, julgando erroneamente que seria trocado pelo embaixador norte-americano que acabara de ser sequestrado por uma organização de esquerda] Comigo vocês podem falar o que quiserem. Mas não digam nada aos soldados que estão de plantão. Que é que vocês querem? Digam a mim que nós somos filhos da puta e não vai acontecer nada. Mas aos soldados, não!. Existe uma diferença muito grande entre um civil e um soldado: nós, civis, nós compreendemos que somos uns filhos da puta, fazendo esse serviço que a gente faz. Mas os milicos não compreendem, não, eles pensam que isso é patriotismo, essas coisas…”.xx
Ainda em relação a esse último aspecto, deve-se observar que quando ainda permanecia em regime de incomunicabilidade Augusto Boal conseguiu enviar duas cartas ao exterior por intermédio de um soldado que, devido a suas inclinações musicais, identificou-se com o fato de o prisioneiro ser co-autor de uma das músicas cantadas pelos outros presos. Quando recuperou a liberdade, o missivista pôde verificar que as cartas chegaram a seu destino, desencadeando a campanha de solidariedade que culminaria na sua soltura.xxi
O olhar crítico do autor, entretanto, não desaparece frente ao episódio:
“Sempre existem soldados assim nos regimes fascistas: gente que condena o governo, mas que ao mesmo tempo não tem a coragem suficiente para negar-se a servi-lo. (…) Esses soldados ‘bonzinhos’ são muito poucos, na verdade: a maioria termina por assumir a ideologia da repressão e a justificar os seus próprios atos contra o povo, a sua própria bestialidade”.xxii
Apesar do permanente tom de denúncia política, o romance não se reduz à condição de simples relatório das atrocidades cometidas pelo regime instaurado no Brasil em 1964. Se a peça teatral Torquemada pode ser lida como um papiro bruto sobre o qual o autor reconstruiu de forma alegórica a sua cólera e o seu rancor, Milagre no Brasil pode ser lido como um palimpsesto, por trás de cujas marcas aparentemente objetivas (“neste livro tudo é verdade, verdade modificada pela memória”) é possível perceber camadas mais profundas e procedimentos estilísticos extremamente elaborados que, somados ao distanciamento crítico operado pelo autor, elevam o romance à categoria de uma das obras-primas da literatura carcerária brasileira.
NOTAS:
BOAL, Augusto. Milagre no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
__________. Torquemada. In: Teatro de Augusto Boal – II. São Paulo: Hucitec, 1990.
__________. Teatro do Oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
__________. Teatro Legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
iCuriosamente, o simpático roedor não comparece no romance ou na peça, apenas nas memórias. Quando fala de sua prisão, aos 70 anos, Boal parece ter passado por um processo catártico, talvez por já ter trabalhado esses demônios em obras precedentes – na peça, com intenso ódio e rancor; no romance, como um jornalista. Hamlet e o filho do padeiro é uma síntese entre o tom passional e a postura crítica verificados nas obras mencionadas e, ao tratar de sua estadia no cárcere depois de trinta anos, o autor se permite de modo muito mais recorrente a ironia, que se espraia como forma de consciência que consegue abarcar e compreender a crueldade perpetrada pelo regime militar.
iiAs circunstâncias de composição dessas duas obras não estão de todo explicitadas. Em suas memórias o autor nos fala apenas dos desenhos que teria subtraído ao olhar vigilante das autoridades do presídio, passando-os em segredo para a mãe que o visitava. No romance, alude ao fato de ter redigido em segredo alguns cadernos, em parte em outras línguas para convencer as autoridades carcerárias de que eram anotações de estudo.
iiiMilagre no Brasil,pp. 12-13. Em várias ocasiões, Augusto Boal nos fala dos “delinquentes enquistados no aparelho governamental”. O diretor do presídio Tiradentes, para onde o dramaturgo seria transferido, é apresentado como um homem dotado de um sinistro pragmatismo: também integrante do “Esquadrão da Morte”, considerava a organização interessante por dispensar “processos demorados”, mas defendia uma certa “discrição” nas execuções e na divulgação dos feitos do grupo. “Suas propostas não venceram nunca: ninguém conseguia tirar aos policiais o prazer de matar, como ao Baixinho ninguém lhe podia tirar o prazer de provocar o medo, o terror. O sadismo era imanente aos integrantes do Esquadrão”. (Idem, p. 129).
ivMilagre no Brasil, p. 26.
vMilagre no Brasil, p. 28.
viMilagre no Brasil, pp. 32-33.
viiA certa altura do livro Augusto Boal afirma ter ouvido à época em que escrevia o romance a história (que não pudemos confirmar) de que o comissário possuiria um aparelho de TV em circuito interno, podendo ver e ouvir de sua mesa o que acontecia na sala de torturas. De qualquer maneira, não é difícil imaginar mais esse instrumento totalitário, que, se realmente existiu, deveria funcionar como uma espécie de panóptico foucaultiano em relação ao zelo dos outros funcionários também encarregados das torturas.
viiiMilagre no Brasil, p. 45.
ixMilagre no Brasil, p. 35.
xComo bem lembrou o autor, esse presídio possui uma longa tradição: antigo mercado de escravos desde o período colonial até a abolição, com o advento da República converteu-se em prisão para presos comuns e também em prisão política em épocas de ditadura.
xiPolyana defendia a tese de que não existe nada, por pior que seja, que não tenha o seu lado bom:“- Podia ser pior… Estou chegando do Carandiru… Podia estar indo para lá…”. Segundo sua lógica, a situação em que se encontravam no Presídio Tiradentes também “podia ser pior”, se comparada a situações análogas então verificadas na Indonésia, na Turquia, no Vietnã… Esse personagem tinha uma peculiar maneira de ver as coisas que, como bem observa Maria José de Queiroz, nos lembra a figura do Barão de Itararé, companheiro de prisão de Graciliano que é descrito nas Memórias do cárcere como um otimista contumaz, devido a seu irônico apego à “teoria das duas hipóteses”. A alcunha do prisioneiro citado por Augusto Boal tem origem no personagem do livro de Eleanor H. Porter, “Poliana”, traduzido por Monteiro Lobato em 1934.
xiiMilagre no Brasil, pp. 85-86. A familiaridade do autor e dos outros presos com a prisão vai sendo revelada ao leitor pela profusão de gírias e alcunhas existente no presídio, pela descrição das atividades comuns que mantinham e pelas estratégias de resistência e sobrevivência que desenvolviam naquele ambiente hostil. O contato com o mundo era permitido por meio de um aparelho de TV, de um rádio e de jornais. Os dias de visita eram regulares, não sendo permitida a visita entre presos. Os alimentos eram requisitados aos familiares (exceto leite e pão) e a limpeza da cela era feita pelos próprios presos. As atividades eram múltiplas: ginástica, aulas de história e línguas, matemática e artesanato. Havia períodos de silêncio absoluto, destinados à leitura e ao estudo.
xiiiMilagre no Brasil, p. 100. A caracterização deste personagem contrasta com a do então ministro da economia, Mário Henrique Simonsen, citado no livro como alguém cujo exercício tecnocrático e megalomaníaco da profissão podia transcorrer estritamente mediante cálculos matemáticos, uma vez que o modelo que ajudara a instalar, coercitivo, autoritário, teria simplificado e pacificado as negociações coletivas para os reajustes salariais e dissolvido o inconveniente do permanente jogo de greves e pressões que havia anteriormente.
xivMilagre no Brasil, p. 113.
xvMilagre no Brasil, pp. 130-133.
xviMilagre no Brasil, p. 159.
xviiMilagre no Brasil, p. 202.
xviiiAtribui-se a um dos ideólogos do regime militar brasileiro – Golbery do Couto e Silva – a afirmação, eivada de cinismo, segundo a qual “a esquerda só se une na cadeia”.
xixNuma circunstância bastante distinta, durante a ocupação pacífica da Assembléia Legislativa de São Paulo por professores em greve, tive oportunidade de verificar algo semelhante entre os grevistas e os policiais militares que ali permaneceram: depois de dois dias, a relação entre professores e policiais tornava-se simpática e até afetiva. Pude ver policiais que reconheceram antigos mestres ou então professores de seus filhos, dos quais se despediram chorando ao serem substituídos por outros policiais que chegavam sempre carrancudos. Quanto a estes, depois de um dia de fome e sede, tornavam-se simpáticos ao verem que seus superiores não se importavam com suas condições físicas e que recebiam atenção apenas daqueles a quem deveriam reprimir. Havia, naturalmente, os refratários, que insistiam em ficar em posição inflexível (empertigados pela domesticação de seus corpos, diria Foucault) e que por sua vez não mereciam de nossa parte nenhuma atenção especial. O episódio, apesar de prosaico e marcado por uma vivência pessoal, serve para mostrar que a convivência forçada em situações extremas não necessariamente conduz à selvageria, podendo ser circunstância de humanização. Daí porque, nessa mesma circunstância, a troca constante de guarda revelou-se na verdade estratégia política de dominação, associada à desumanização.
xxMilagre no Brasil, p. 194.
xxiPressionado por uma campanha internacional, o regime viu-se obrigado a promover sua soltura e o autorizou a se juntar ao elenco do Arena que participava do Festival Mundial de Teatro de Nancy (França), fazendo-o assinar uma declaração de que retornaria ao país e, ao mesmo tempo, ameaçando-o de morte caso cumprisse o que fora obrigado a declarar no papel. Assim Augusto Boal chegou ao avião que o levaria ao longo exílio, do qual retornaria apenas após a anistia.
xxiiMilagre no Brasil, p. 52.
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Ovídio Poli Junior: Escritor, editor e doutor em literatura brasileira pela USP.
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