(Portuguese) Massacre em Alto Mar: “Eles vieram e mataram mesmo”
ORIGINAL LANGUAGES, 5 Jul 2010
Em entrevista, a cineasta brasileira Iara Lee, integrante da Frota da Liberdade, conta sua experiência a bordo do navio atacado por Israel.
Iara Lee, a única brasileira integrante da missão humanitária atacada por Israel a caminho da Faixa de Gaza, na Palestina, não tem outro adjetivo para se referir ao incidente: carnificina. A ação, ocorrida em 31 de maio, deixou, até o momento, um saldo de nove mortos, todos integrantes do navio Mavi Marmara, onde ela estava. “Fiquei preocupada, pensando no que estava acontecendo com meus amigos, com o pessoal da minha equipe. Quando subi, vi um monte de mortos, de machucados. Foi um negócio rápido”, conta. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela relata, entre outros assuntos, o ataque, os momentos na prisão em Israel e a suspeita de que agentes israelenses se infiltraram na missão.
Brasil de Fato – Como você começou a entrar em contato com a causa palestina?
Iara Lee – Em 2003, eu fiquei injuriada que os EUA, mesmo com milhões de pessoas na rua protestando, invadiram o Iraque e começaram a matar o pessoal por lá. Então, fui ver o que rolava naquela parte do mundo, para entender um pouco mais. Desde então, tem sido uma devoção total a tentar entender e aprender, a ver qual é o lado deles. Obviamente, ninguém é santo, mas a situação de calamidade em que se encontram os palestinos é uma coisa terrível. É muito triste ver que oprimidos viram opressores. Os judeus tiveram todos esses problemas no passado e, agora, comportam-se pior ainda.
Nessa época, você também esteve na Palestina ou só no Iraque?
Na verdade, não consegui entrar no Iraque. Fiquei na Jordânia, tentando entrar. Na Palestina, também. Quando tentei entrar, não deixaram. Tentei entrar de novo em 2004. Mas, do aeroporto de Tel-Aviv, botaram-me na prisão e, depois, me deportaram. E falaram que eu nunca mais iria poder entrar. Vocês sabem como eles são, né? Se você mostra um pouco de solidariedade aos palestinos, já te colocam na lista negra. Finalmente, consegui entrar em Gaza entre dezembro de 2009 e janeiro de 2010, com a Gaza Freedom March [Marcha da Liberdade de Gaza]. Fiquei dois dias e meio e já nos mandaram embora. Fomos obrigados a sair. E, agora, estava voltando para Gaza com essa carga humanitária quando ocorreu essa carnificina.
O que você viu em Gaza quando esteve lá nesses três dias? Qual foi sua impressão? A coisa é tão feia quando a gente imagina?
É claro! Se você está atacando a infra-estrutura básica do país… os caras não têm nem saneamento básico, nem acesso à água limpa. Isso é um absurdo. Os israelenses bombardearam os prédios da ONU, a única fábrica de farinha, as escolas, os hospitais… isso é um crime internacional. É uma crise humanitária total. Mas aí que está. Nunca acontece nada com Israel. Os EUA batem nas costas de Israel e falam assim: “ó, não faz não, tá?”. Os israelenses acharam que ninguém ia ver a carnificina porque tinham cortado todos nossos satélites. Mas a gente tinha um satélite de backup, então, conseguiu transmitir um pouco o ataque. E o mundo inteiro viu e ficou abismado. Vendo esse material, você decide por si mesmo o que foi aquilo. A gente que estava esperando para atacá-los ou eles que vieram e atacaram a gente? Era um barco de amor ou de ódio? Você decide por si próprio.
Antes da ação, as autoridades israelenses já afirmavam para a opinião pública de Israel que a missão humanitária tinha o objetivo de prestar apoio ao terrorismo. Inclusive usaram essa expressão, “barco do ódio”. O que você acha dessa campanha do governo israelense?
Mas mesmo essa acusação o governo israelense acabou assumindo que era mentira. Não conseguiram provar. Eles jogam uma mentira atrás da outra, o mundo absorve, começam a escrevê-las na imprensa e, depois que as mentiras são desvendadas, a imprensa não desvenda junto. Por isso que a gente tem que fazer, com nossos veículos pequenos, nossas estruturas pequenas, com que a informação verdadeira chegue às pessoas. A gente continua trabalhando, com foto, com vídeo, com depoimento, com investigações, com o que puder. O intuito maior é o de fazer uma pressão internacional para realmente haver uma investigação internacional e independente sobre o que aconteceu e se aplicar a lei internacional. Acho que a gente tem que continuar lutando. Podem me ameaçar de morte, desaparecer comigo, mas eu vou continuar trabalhando. Não vou ficar me submetendo às ameaças. Eu não vou parar de fazer meu trabalho, porque é uma obrigação moral. É uma obrigação que todos nós, seres humanos decentes, trabalhemos pela Justiça. Não é possível ficar só olhando, assistindo pela televisão a todas essas injustiças acontecerem.
Qual era o perfil dos integrantes da frota? Era muito variado?
Era muito misturado. Tinha desde uma criancinha de um ano até pessoas de 85, 86 anos. O mais velhinho que eu entrevistei tinha 85 anos. Eram pessoas de várias áreas. Religiosos…
Católicos, muçulmanos…?
Católicos, muçulmanos, ateus, agnósticos, tinha de tudo. Foi a viagem mais importante da minha vida, porque eu sentia no ar aquela motivação pela Justiça. Eram de várias áreas. Jornalistas, artistas, voluntários humanitários, enfermeiros… uns que eram só pais de família, outros que estavam lá porque queriam fazer alguma coisa…
Como estava o clima dentro do barco, as conversas…? Vocês estavam confiantes de que poderiam chegar à Faixa de Gaza?
Eu acho que as pessoas eram bem inocentes. Obviamente, não posso falar porque não entrevistei as 400 pessoas. Mas as que eu entrevistei sempre tinham esse otimismo e diziam: “chegaremos lá, vamos abraçar todo mundo que vai estar esperando a gente”. Chegaram ao ponto de falar: “Iara, você que é muito negativa! Você é maluca, você é uma exagerada, uma alarmista. Imagina que os caras vão atacar a gente aqui!”. E eles tiveram o atrevimento, vieram e mataram mesmo! Uma coisa incrível.
Então ninguém esperava uma ação desse tipo. Talvez esperassem uma interceptação, mas não desse tipo, não é?
Claro que não. A gente esperava que ia ser no verbal, com tiros para o ar… Eu, por exemplo, estava ciente de que a gente ia parar na prisão. Já havia lido que eles já tinham limpado uma prisão nova para nós. Mas não imaginava que fossem matar as pessoas! Isso é um absurdo!
E como foi? Onde você estava, o que viu, o que ouviu?
Às 11 horas da noite, mais ou menos, estávamos no meio de águas internacionais e vimos uns dois navios da marinha israelense. Passaram-se as horas, e as pessoas lá, escrevendo na internet, rezando, conversando, outros dormindo… aquela coisa meio tensa, mas ninguém achando que eles nos atacariam no meio da escuridão e em mares internacionais. Mas tiveram a petulância. Cortaram toda a comunicação de satélite e, às 4 horas da manhã, quando tiveram a segurança de que não haveria mais comunicação com o resto do mundo, chegaram e começaram a atacar. Eram vários botes de borracha…
Você estava acordada?
Sim. Muita gente estava dormindo, mas muita gente estava acordada. Estava meio tenso o clima. Então, eles mandaram esses barcos, bem silenciosos, cheios de soldados. E já começaram a operação. De repente, eu olhei para o lado e já tinha um helicóptero descendo com um monte de comando. Aí, comecei a ouvir uns tiros. Falei: “nossa, os caras estão atirando!”. Então, gritaram: “mulheres para baixo!”. Eu desci também, e fiquei preocupada, pensando no que estava acontecendo com meus amigos, com o pessoal da minha equipe. Quando subi, vi um monte de mortos, de machucados. Foi um negócio rápido.
A essa hora, você já tinha parado de ouvir os tiros?
Não, os tiros foram contínuos. E eu vendo aquele sangue todo, aquela gente toda. Foi uma coisa muito surreal. Aí, gritaram de novo: “mulheres para baixo!”. Eu já estava quase vomitando…
Quem gritava “mulheres para baixo”? Os soldados ou o pessoal do barco?
Os próprios passageiros. Por isso que não teve nenhuma mulher morta. Quando eu já estava de novo com as mulheres, ouvimos, de repente, um megafone: “olha, acabou a história, não resistam, não se movam, fiquem calmos, porque os caras já pegaram a liderança do navio, estão usando balas mesmo, e não tem nem jeito de vocês quererem resistir com sua cadeira, com sua vassoura…”. Logo em seguida, vieram esses caras com a roupa preta, só mostrando os olhinhos, com aquelas armas gigantescas, como se estivessem numa guerra total. Apontando as armas para a gente, falaram: “olha, fica todo mundo quieto aí, a gente vai começar a algemar todo mundo”. Então, algemaram um por um e mandaram todos para cima, os homens e as mulheres. Nos sequestraram e nos levaram para o porto de Ashdod. Lá, tiraram nossas digitais, confiscaram nossos passaportes e pertences, botaram-nos nos camburões e nos mandaram para a prisão. Ficamos lá, por dois ou três dias, até conseguirmos fazer com que a embaixada viesse, conseguirmos um advogado, fazermos uma ligação… Depois do terceiro dia, às 6 horas da manhã, começaram a gritar: “vocês vão para casa”. No aeroporto de Tel-Aviv, descobrimos que o primeiro-ministro da Turquia [Recep Tayyip Erdogan] tinha mandado um avião da Turkish Airlines para tirar todo mundo daquela zona. Foi uma grande solidariedade do governo da Turquia. Eles ficaram tão assustados e surpresos com essa agressão que se responsabilizaram de cuidar de todo mundo.
Você chegou a afirmar à imprensa que foram mais de nove mortos, porque ainda haveriam desaparecidos.
Eu não falo de forma oficial porque, senão, cria muita confusão. Eu perguntei para uma enfermeira e ela disse que eram 14 mortos. Mas ela era turca, ou seja, de repente, teve problema de tradução. Ela não fala inglês e, de repente, não entendeu o que eu perguntei. A gente fica comentando o que um viu, o que não viu. É só especulação. Ontem [dia 11], eu ouvi dizer que não tinha ninguém procurando por esses desaparecidos. Então, algumas pessoas estão especulando de que [os desaparecidos] eram agentes do Mossad [a polícia secreta de Israel]. Isso tudo é especulação, mas, obviamente, eles tinham os espiões lá. Como a gente tinha acesso à internet, víamos que saía no The Jerusalem Post o que a gente estava fazendo nos navios. Como que os caras sabiam, uma hora depois, que a gente tinha feito uma reza, cantado uma canção? Deve ter tido uma certa infiltração. Parece que, quando eles começaram a contatar os navios, sabiam o nome de cada capitão. Teve um soldado que derrubou um caderninho que continha as fotos dos VIPs [lideranças], dos militantes em cada barco… eles sabiam tudo.
O que me chamou a atenção é que todos os mortos eram turcos (um deles, estadunidense de origem turca). Por que aconteceu isso? Foi coincidência?
Como eu disse antes, a gente só pode especular. Obviamente as pessoas ficam intrigadas. A maioria das pessoas de nosso navio era turca. Eu até perguntava se os que foram mortos eram os cabeças dessa organização humanitária [IHH] ou só passageiros. Há muitas perguntas que ainda não foram respondidas. Eu, por exemplo, nem sei onde estão todos os machucados. Quando saímos de Tel-Aviv, não conseguimos evacuar todas as pessoas porque alguns estavam feridos demais. Se os tirássemos por duas horas até chegar em Istambul, eles morreriam. Quando a gente já estava no avião, demorou um tempão para se fazer a checagem dos passageiros. Porque a organização humanitária tinha uma lista, o pessoal do avião outra, Israel outra. Foi aquela confusão para saber se tinha entrado todo mundo no avião ou não. Por isso que é muito importante fazer um esforço e pressão para se ter uma investigação independente. Há ainda muitas questões não respondidas. Uma coisa é certa: foi um crime da parte do governo de Israel, e isso tem que ser levado à Justiça.
Gostaria que você contasse um pouco como foram os momentos de detenção em Israel. Como os soldados agiam, o que eles falavam?
A gente não sofreu agressões físicas. Não teve aquele abuso de tortura…
Mas eles falavam alguma coisa para vocês?
Aquela grosseria do dia-a-dia deles. Mas, na parte onde estavam os homens, parece que muitos foram fisicamente torturados. Hoje mesmo [dia 12] recebi uma informação de que foram espancados. Em quem abria a boca e tentava confrontar, os caras batiam mesmo.
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Iara Lee é uma cineasta brasileira radicada em Nova York, nos EUA. É autora dos documentários Synthetic Pleasures (1995) e Modulations (1998), entre outros. Membro do conselho do International Crisis Group e da National Geographic Society, já morou no Líbano e no Irã. Militante pela paz no Oriente Médio, colabora com diversas iniciativas nesse sentido, entre elas, a Campanha Internacional pela Eliminação de Bombas de Fragmentação.
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