(Português) Ilhas Marshall: Um Passo Ousado Em Prol do Desarmamento Nuclear
ORIGINAL LANGUAGES, 16 Jan 2017
Emb. Sergio Duarte – TRANSCEND Media Service
Introdução
O território da República das Ilhas Marshall, localizado na região do oceano Pacífico conhecida como Micronésia, é formado por 19 atóis de coral com mais de mil ilhas e ilhotas. Em 1947 o arquipélago foi declarado “território estratégico” pelas Nações Unidas e em seguida colocado sob a tutela dos Estados Unidos. 1986 as Ilhas Marshall obtiveram plena soberania e em 1991 a República foi admitida como membro das Nações Unidas.
Entre 1946 e 1986 diversos atóis, principalmente os de Bikini e Eniwetok, foram utilizados pelos Estados Unidos para a realização de um total de 67 ensaios de armas nucleares na atmosfera. Os habitantes foram transferidos para outras partes do arquipélago. A mais violenta dentre as séries de testes foi a denominada Castle, com uma potência total de 48 megatons[i]. O primeiro deles, de codinome Bravo, uma detonação termonuclear de 15 megatons, equivalente a um milhão de vezes a da bomba lançada sobre Hiroshima, criou uma cratera de mais de 40 metros de profundidade e cerca de um quilômetro e meio de diâmetro. Uma chuva de partículas radioativas cobriu uma superfície de mais de 35 mil quilômetros quadrados, liberando 30 vezes mais iodo radioativo do que os desastres de Fukushima e Chernobil juntos. O mundo tomou conhecimento do ensaio quando o barco pesqueiro japonês Daigo Fukuryu Maru regressou ao porto de Yaizu, no Japão. Expostos à chuva de partículas, seus 23 tripulantes haviam sido contaminados. Centenas de toneladas de peixes e outros animais marinhos capturados por pescadores foram igualmente atingidos pela contaminação e tiveram de ser destruídos.
Durante os doze anos de duração dos ensaios, a população de outras ilhas e atóis do arquipélago experimentaram graves danos. Alguns foram completamente evacuados pela Marinha dos Estados Unidos. Alimentos e água potável foram constantemente contaminados. As pessoas vomitavam e seus cabelos começaram a cair. A incidência de câncer aumentou consideravelmente, assim como a de deformações em recém-nascidos. As taxas de doenças cardíacas, da tireóide, pulmões, ossos e sistema digestivo também aumentaram.
A população de Bikini que regressou ao atol em 1969 foi novamente evacuada em 1978 ao ser detectada exposição excessiva à radiação. Moradores que haviam sido transferidos para outras ilhas e mais tarde levados de volta a seus lares foram obrigados a abandoná-los de novo em 1985. A população das Ilhas Marshall ainda reivindica compensação adequada pelos prejuízos e perdas decorrentes dos ensaios nucleares.
Medidas Legais
Em 2014 a República das Ilhas Marshall iniciou duas ações judiciais: uma na Corte Internacional de Justiça, com sede na Haia, contra os nove países[ii] possuidores de armas nucleares, e outra em um tribunal federal norte-americano contra o governo dos Estados Unidos. Essas demandas não buscavam compensação financeira, e sim pleiteavam um julgamento declaratório de falta de cumprimento do artigo VI[iii] do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) por parte daqueles nove Estados.
Organizações da sociedade civil apoiaram as ações e proporcionaram assistência técnica para a elaboração das demandas e para seu acompanhamento nos tribunais. Ambas as ações se baseiam na opinião consultiva unânime proferida em 1996 pela própria Corte Internacional de Justiça no sentido de que “existe uma obrigação de prosseguir de boa fé e levar a conclusão negociações na direção do desarmamento nuclear em todos os seus aspectos sob controle internacional estrito e eficaz”, assim como no texto do Tratado de Não Proliferação. Ambas também derivam da chamada “iniciativa humanitária” que ganhou impulso na comunidade internacional desde a Conferência de Exame do TNP em 2010 e que busca estigmatizar, proibir e eliminar as armas nucleares.
Ambas as ações foram julgadas em 2015. O tribunal federal norte-americano considerou a demanda inadmissível. Os representantes das Ilhas Marshall apelaram dessa decisão. Quanto à Corte Internacional de Justiça, foi inicialmente examinada a objeção levantada pelo Reino Unido de que por não haver disputa anterior entre as partes no caso, o pleito não deveria ser admitido. A conclusão da maioria dos Juízes foi de que a Corte não prosseguisse no exame do mérito da questão.
Somente três dos nove Estados possuidores de armas nucleares – Índia, Paquistão e Reino Unido – reconhecem a jurisdição compulsória da Corte da Haia e enviaram representantes ao julgamento. China, RPDC, França, Israel, Rússia e Estados Unidos preferiram não participar das sessões da Corte[iv]
Vários Juízes apresentaram opiniões dissidentes e votos em separado. O voto dissidente do Juiz brasileiro, Antonio Augusto Cançado Trindade, é o mais extenso e circunstanciado entre as manifestações dos Juízes. Entre outros argumentos, ele afirmou que o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) deve ser considerado parte do direito internacional consuetudinário e precisa ser observado por todos os Estados. Em sua opinião, um pequeno grupo de Estados – tais como os possuidores de armas nucleares – não pode desprezar ou minimizar as reiteradas resoluções adotadas pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança simplesmente por haver votado contra elas. Tais resoluções são válidas para todos os membros das Nações Unidas e não apenas para a ampla maioria que votou a favor. Portanto, possuem força normativa.
O parágrafo final do voto do Juiz Cançado Trindade merece ser transcrito em sua integridade: “Um mundo com arsenais de armas nucleares, como o nosso, está fadado a destruir seu passado, ameaça perigosamente o presente e não tem qualquer futuro. As armas nucleares preparam o caminho para nada. Em minha opinião, a Corte Internacional de Justiça, como principal órgão judicial das Nações Unidas, deveria, neste julgamento, ter demonstrado sensibilidade a esse respeito e deveria ter dado sua contribuição em um tema de grande preocupação para a comunidade internacional vulnerável, e na verdade para a humanidade como um todo.”
Impacto no Tratamento Multilateral de Questões de Desarmamento
As divergências entre os Juízes mostram a relevância do atual debate nos órgãos multilaterais das Nações Unidas e nas organizações da sociedade civil a respeito da legitimidade da posse indefinida e constante aperfeiçoamento do armamento nuclear, assim como da legalidade de seu uso. O grau de comprometimento com o desarmamento expresso pelos votos e atitudes dos Estados foi um dos pontos levados à consideração dos Juízes[v].
Durante a última década o interesse da comunidade internacional pelos aspectos humanitários do uso de armas nucleares aumentou consideravelmente. A Conferência de Exame do TNP em 2010 expressou unanimemente sua preocupação com “as catastróficas consequências de qualquer uso de arma nucleares e conclamou todos os Estados a cumprir a legislação internacional aplicável, inclusive o direito humanitário. Três Conferências internacionais, em 2012 e 2014, examinaram as consequências de detonações de armas nucleares. Uma das principais conclusões foi a de que “o impacto de uma detonação nuclear, qualquer que seja sua causa, não se restringiria a fronteiras nacionais e poderia ter consequências regionais e até mesmo globais, causando destruição, mortes e deslocamentos, assim como profundos prejuízos de longo prazo ao meio ambiente, clima, saúde e bem-estar humanos, desenvolvimento econômico e social e à ordem social, chegando até mesmo a ameaçar a sobrevivência da humanidade.”
Os principais instrumentos multilaterais no campo do desarmamento nuclear também refletem essa preocupação. Já em 1963 o Tratado de Proibição Parcial de Ensaios Nucleares (PTBT na sigla em inglês) chamava a atenção para a importância de prevenir a contaminação do meio ambiente humano por substâncias radioativas, e em 1996 o Tratado de Proibição Abrangente de Ensaios (CTBT) mencionava a contribuição da cessação de testes para a proteção do meio ambiente. Embora este último instrumento não se encontre ainda formalmente em vigor[vi], já estabeleceu um forte padrão de comportamento internacional que não admite a realização de explosões atômicas experimentais[vii].
A Corte da Haia reconheceu que as Ilhas Marshall têm “motivos especiais de preocupação” em relação ao armamento nuclear. Ao reconhecer o interesse especial de um país não possuidor de armas nucleares nessa questão, a Corte pode haver aberto o caminho para que países potencial ou realmente afetados pelo uso – por desígnio ou acidente – de tais armas, possam invocar motivos relevantes em apoio a suas preocupações ou demandar a adoção de medidas compensatórias. Diante das possíveis consequências planetárias de uma detonação nuclear, qualquer Estado poderá se considerar afetado por ela, independentemente de sua localização.
O resultado das duas ações legais iniciadas pelas Ilhas Marshall ilustra a dificuldade de responsabilizar os países possuidores de armamento nuclear pela falta de cumprimento com as obrigações de desarmamento e não proliferação e de obrigá-los a respeitar tais compromissos pela via judicial. Alguns comentaristas notaram que a Corte Internacional de Justiça tem consistentemente se abstido de fazer julgamentos definitivos em questões de segurança internacional, especialmente no que toca ao armamento nuclear em casos que envolvam os interesses das principais potências. Deve-se notar, incidentalmente, que os grandes órgãos de imprensa nos países nuclearmente armados e seus aliados deram pouca ou nenhuma atenção às demandas das Ilhas Marshall.
Ao contestar a legitimidade e legalidade da posse e uso de armas nucleares, a ação judicial das Ilhas Marshall traz à luz a emergência de uma nova abordagem para a complexa e espinhosa questão do desarmamento nuclear, às vésperas do início de um novo ciclo quinquenal de exame do Tratado de Não Proliferação. A primeira das três reuniões preparatórias está programada para abril/maio de 1917 e a Conferência de Exame ocorrerá em 2020. Além disso, a recente Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas adotou uma proposta iniciada por um grupo de países[viii] e determinou o início de negociações, em 2017, de um instrumento internacional juridicamente vinculante para banir as armas nucleares, com vistas a sua completa eliminação. Esse resultado pode ser atribuído em grande parte à influência do movimento internacional em prol da eliminação dos arsenais atômicos. Os Estados que não possuem essas armas tomaram agora a iniciativa da busca de novos acordos no campo do desarmamento, enquanto os possuidores se encontram na defensiva.
A participação nas próximas negociações estará aberta a todos os Estados e organizações internacionais, assim como a representantes da sociedade civil. Pela primeira vez a negociação de um instrumento internacional no campo do desarmamento e segurança a ser subscrito por Estados terá o benefício da participação e contribuição direta de entidades não governamentais.
Será essencial que nesse empreendimento pioneiro tanto os Estados que advogam medidas urgentes e concretas e urgentes de desarmamento nuclear e de deslegitimação das armas atômicas quanto as organizações da sociedade civil que promovem campanhas internacionais evitem confrontações e recriminações contraproducentes e desnecessárias, e utilizem sua capacidade de persuasão em favor da participação construtiva das potências nuclearmente armadas e seus aliados no esforço para atingir a completa eliminação do armamento atômico. A universalidade dos acordos internacionais no campo do desarmamento e a inteira confiança em seu cumprimento são condições imprescindíveis para sua consecução e permanência. Ajustes discriminatórios nada mais farão do que estimular divergências e dificilmente conseguirão duração ilimitada. Nenhum pacto poderá ser bem sucedido e duradouro se não contemplar os interesses legítimos de todas as suas parte.
NOTAS:
[i]– Um megaton equivale a um milhão de toneladas de TNT.
[ii] China, França, Índia, Israel, Paquistão, RPDC, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos.
[iii] Cada Parte deste Tratado compromete-se a entabular, de boa fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear, e sobre um Tratado de desarmamento geral e completo, sob estrito e eficaz controle internacional.
[iv] DPRK, Índia, Israel e Paquistão não são Partes do TNP.
[v] A proliferação de armas nucleares foi considerada uma ameaça à paz e segurança internacionais pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão primordialmente responsável pela manutenção da paz e da segurança. Pode-se argumentar que os atuais possuidores de fato promoveram a proliferação ao adquirir armamento nuclear e aumentar sua quantidade, e que ainda a promovem mediante a introdução de aperfeiçoamentos tecnológicos, mesmo enquanto reduzem seus arsenais. Em diversas ocasiões o Conselho aprovou sanções contra certos países reconhecidos como “Estados não nucleares” nos termos do TNP, devido a suas atividades nucleares.
[vi] A ratificação por parte de oito Estados (China, DPRK, Egito, Índia, Irã, Israel, Paquistão e Estados Unidos.
[vii] O CTBT não proíbe explosões “subcríticas”, (isto é, as que não dão origem a uma reação em cadeia) e simulações computadorizadas em laboratório.
[viii] África do Sul, Áustria, Brasil, Irlanda, México e Nigéria.
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Sergio Duarte – Embaixador brasileiro, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento; ex-Presidente da Conferência das Partes do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares; ex-Presidente da Junta de Governadores da Agência Internacional de Energia Atômica.
This article originally appeared on Transcend Media Service (TMS) on 16 Jan 2017.
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