(Português) Uma Nova Convenção sobre Armas Nucleares
ORIGINAL LANGUAGES, 5 Jun 2017
Emb. Sergio Duarte – TRANSCEND Media Service
5 junho 2017 – Conforme havia anunciado, a Presidente da Conferência das Nações Unidas para negociação de uma Convenção para a proibição de Armas Nucleares, Embaxadora Elayne Whyte-Gómez, apresentou no dia 22 de maio o anteprojeto elaborado em consequência da primeira parte daquelas negociações, realizada em março passado. O texto será debatido pela Conferência entre 15 de junho e 7 de julho. A expectativa geral é a de que o resultado final seja adotado por consenso e que a nova Convenção seja aberta à assinatura dos Estados.
A Resolução no. 1 da primeira Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1946, já determinava a constituição de uma Comissão encarregada de fazer propostas específicas para “a eliminação do armamento atômico” dos arsenais nacionais. A falta de resultados concretos ao longo dos 72 anos de existência das Nações Unidas fez crescer a frustração da maioria dos membros da comunidade internacional e finalmente levou um grupo de países a propor em outubro último, pela primeira vez na história da Organização, a negociação de um tratado de proibição de armas nucleares.
A importância das considerações humanitárias que se encontram na origem do movimento internacional em favor da eliminação do armamento nuclear transparece desde o Preâmbulo do anteprojeto. O primeiros parágrafos reconhecem as “catastróficas consequências” e implicações de qualquer uso de armas nucleares, preocupação aliás já registrada unanimemente pelos Estados-Parte do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) na Conferência de Exame daquele instrumento em 2010. Em seguida, o Preâmbulo menciona o sofrimento das vítimas de detonações nucleares, inclusive ensaios realizados pelas potências que se dotaram de tais armas. Outro parágrafo importante declara que o uso de armamento atômico é contrário às normas do Direito Internacional, especialmente os princípios e regras do direito humanitário, que derivam do costume, dos princípios de humanidade e dos ditames da consciência pública.
O anteprojeto da nova Convenção registra, igualmente, a decisão dos Estados Parte da Convenção de contribuir para a realização dos objetivos e princípios da Carta da Organização e de agir no sentido da realização de medidas futuras adicionais de desarmamento nuclear, a fim de facilitar a eliminação dessas armas e dos meios de seu transporte. Especial relevo é conferido à Opinião Consultiva da Corte Internacional de Justiça, proferida em 8 de julho de 1996, segundo a qual “existe uma obrigação de prosseguir de boa fé e levar a sua conclusão” negociações no sentido do desarmamento nuclear. Essa obrigação está consubstanciada no Artigo VI do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, porém até o momento os países possuidores de armas nucleares não demonstram maior interesse em levar adiante tais negociações.
Outra menção preambular importante é a reafirmação da “importância crucial” do TNP, do Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT) e dos instrumentos internacionais que estabelecem zonas livres de tais armas. Essas expressões deixam evidente que a Convenção não pretende prejudicar o regime atual de não proliferação ou solapar seus fundamentos jurídicos, e sim, ao contrário, reforçá-lo a fim de promover a realização de antigos objetivos compartilhados pela comunidade internacional como um todo.
Nos artigos 1 e 2 da parte operativa o anteprojeto formula com clareza e objetividade as proibições que os Estados que vierem a fazer parte do instrumento se obrigarão a respeitar: desenvolvimento, produção, fabricação, posse, armazenamento de armas nucleares e outros engenhos nucleares explosivos, entre outras atividades banidas. O uso de armas nucleares é também proibido, assim como a transferência dessas armas ou engenhos explosivos a qualquer recebedor, além de seu estacionamento, instalação ou implantação. O anteprojeto reafirma expressamente o CTBT ao proibir ensaios de armas nucleares e qualquer outra explosão atômica experimental.
Ainda segundo o anteprojeto, os Estados Parte da Convenção se comprometerão a declarar formalmente se fabricaram ou possuíram armas nucleares, ou as obtiveram de qualquer outra forma após a data de 5 de dezembro de 2001. Os motivos da escolha dessa data não parecem muito claros. A obrigatoriedade de apresentação dessas declarações se inspira no precedente estabelecido pela Convenção de Proibição de Armas Químicas. Ao contrário desta última, porém, o anteprojeto não contém a obrigação de destruir as armas ou engenhos que venham a constar de tais declarações. Nesse sentido, a Convenção não seria, strictu sensu, um tratado de “desarmamento” e sim, mais propriamente, um meio para atingir esse objetivo.
O Artigo 3 trata de salvaguardas para evitar o desvio para armas nucleares ou engenhos explosivos da energia nuclear utilizada em finalidades pacíficas, conforme detalhado no Anexo à Convenção. É importante assegurar que a aplicação de tais salvaguardas seja realizada em conformidade com os Estatutos da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Ao obrigar-se, pelo artigo 4, a eliminar antes da entrada em vigor da Convenção as armas nucleares fabricadas, possuídas ou adquiridas de outra forma, os Estados-Parte se comprometerão também a cooperar com a AIEA para a verificação da completude dos estoques de materiais e instalações nucleares. Esse dispositivo pressupõe que o processo de eliminação das armas nucleares deve preceder a entrada em vigor da Convenção para cada Estado-Parte. O Artigo 5 traz a possibilidade de apresentação e consideração de propostas de medidas complementares eficazes de desarmamento nuclear, inclusive a eliminação, mediante verificação, das armas nucleares remanescentes. Os Estados possuidores ou hospedeiros de armas nucleares anteriormente à data de 5 de dezembro de 2001 que vierem a aderir à Convenção poderão servir-se desse dispositivo para propor tais medidas a fim de serem examinadas pelas Reuniões bienais das Partes, estabelecidas pelo Artigo 9. Dessa forma, a Convenção estaria permanentemente aberta à inclusão de novos membros que decidam eliminar seu armamento nuclear e posteriormente aceder ao instrumento no momento que considerarem oportuno. Essa seria uma forma de assegurar que todos os membros da Convenção gozem dos mesmos direitos e obrigações, evitando um indesejável caráter discriminatório.
Os demais dispositivos do anteprojeto não deverão suscitar maiores controvérsias durante as negociações. O Artigo 6 se alinha com a inspiração humanitária da Convenção. Segundo o Artigo 9, os Estados que não sejam Parte da Convenção poderão participar da Reuniões e Conferências de Exame como observadores. Suas prerrogativas e limitações nessa qualidade devem ser claramente expressas. Um dispositivo inovador no Artigo 13 busca promover a universalidade da Convenção ao conclamar as Partes a “estimular” os demais Estados a ratificar, aceitar, aprovar ou aceder a ela.
Alguns dos possuidores de armas nucleares e seus aliados expressaram de diferentes formas oposição à negociação da Convenção, inclusive afirmando que ela acarretará enfraquecimento do regime internacional de não proliferação. O Artigo 19 procura responder a essas preocupações ao mencionar explicitamente que o novo instrumento não afeta dos direitos e obrigações das Partes do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.
A grande imprensa internacional nos países centrais em geral tem dado pouca ou nenhuma atenção ao processo de negociação da Convenção, embora publicações especializadas venham examinando as diversas implicações da eventual adoção de um instrumento dessa natureza. A opinião pública e as organizações da sociedade civil, principalmente naqueles países e em seus aliados, tem papel importante a desempenhar para assegurar o êxito da Convenção e sua capacidade de tornar-se um instrumento universal juridicamente vinculante de codificação do repúdio às armas nucleares.
Nota-se grande expectativa e interesse pelo prosseguimento das negociações por parte do grande número de Estados e organizações não governamentais que participaram dos trabalhos inciais da Conferência em março último. É importante que o texto permaneça simples e objetivo, e ao mesmo tempo inclusivo e capaz de obter adesão geral. Após 72 anos do início da proliferação de armas nucleares e 47 anos desde a entrada em vigor do TNP, a continuada existência de armas nucleares e a aterradora perspectiva de sua utilização ainda assustam a humanidade. Não devemos perder a oportunidade de estabelecer uma norma jurídica de proibição de tal armamento.
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Sergio Duarte – Embaixador brasileiro, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento; ex-Presidente da Conferência das Partes do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares; ex-Presidente da Junta de Governadores da Agência Internacional de Energia Atômica.
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